A simpatia e o carinho que cultiva pelas pessoas são características marcantes da personalidade de Ariel Vareiro Pereira, 35, caxiense conhecido — e até homenageado — por estudantes e professores da Universidade de Caxias do Sul (UCS), local onde trabalha há nove anos, de estagiário a auxiliar administrativo, função que desempenha hoje na Área do Conhecimento de Ciências Jurídicas (ACCJU). É formado em Recursos Humanos e acadêmico do curso de Direito. No meio tradicionalista, Pereira também é conhecido e reconhecido: como declamador, ele já foi diversas vezes premiado a nível estadual no Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (Enart), considerado o maior festival de arte amadora da América Latina.
Pereira é negro e, apesar de sua personalidade e de todas as atividades que desempenha, afirma ter sofrido preconceito — com ofensas e ameaças — única e exclusivamente pela cor de sua pele, na quarta-feira (26). Por meio de boletim de ocorrência registrado junto à Delegacia de Polícia e relato publicado em sua conta pessoal do Facebook, ele diz buscar justiça e garantir visibilidade à situação para evitar que outras pessoas continuem sujeitas a isso.
— A gente passa tanto por esse tipo de coisa que acaba acostumando, deixando passar. Mas pensei que, quanto mais deixamos passar, mais as pessoas vão continuar sendo racistas sem punição. Não vamos mais nos calar — afirma o caxiense, que ganhou apoio por meio de comentários à publicação que já passa dos 360 compartilhamentos no Facebook.
"Eles entenderam que eu era um ladrão pelo fato de eu ser negro"
Pereira mora no bairro Petrópolis, em um condomínio do qual é síndico. A dedicação em ajudar as pessoas o fez deslocar-se até o Centro na última quarta-feira (26) para auxiliar um vizinho do prédio com uma questão relacionada ao saque do FGTS, em uma agência da Caixa Econômica Federal localizada na Rua Os Dezoito do Forte.
Ele conta que, enquanto o vizinho era atendido para autorização do saque, resolveu aguardar do lado de fora da agência. Foram alguns poucos minutos de espera, sob o sol intenso das 14h, até que ele decidisse atravessar a rua, atraído pela vitrine da loja de materiais elétricos e hidráulicos.
— Ainda antes de entrar na loja dois homens me observavam da rua. Eles entraram junto comigo e ficaram muito próximos, quase me encurralando. Eu não entendi o que estava acontecendo — relata Pereira, que estava interessado em algumas torneiras para seu recém-adquirido apartamento.
Segundo ele, de forma rude, a atendente afirmou que aquilo que ele procurava não havia no estoque da loja, enquanto ele continuava sendo "cercado" pelos dois homens. Ao deixar a loja, voltou à agência para esperar seu vizinho, sendo surpreendido novamente, por um dos homens, desta vez na porta do banco, quando deixava o local.
— Ele disse ter me observado e que sabia o que eu queria na loja; que se eu aparecesse novamente eles iam me "encher de tiro" além de muitos outros insultos e ameaças. Demorou pra cair a ficha, eu só fui entender que era racismo quando algumas pessoas ao redor começaram a dizer que ele não tinha o direito de me acusar daquele jeito — conta Pereira.
Ele conta que se manteve dentro da agência como forma de proteção, uma vez que o homem o ameaçava fisicamente, de forma enfática. A situação só foi apartada com a chegada da Brigada Militar que, segundo Pereira, ouviu algumas pessoas no local.
— Muitos se disponibilizaram a testemunhar legalmente, foi um situação que me deixou muito chateado. Eu estava com roupas simples e tenho certeza absoluta que fui destratado pela dona da loja e pelos agressores por terem entendido que eu fosse um ladrão, pelo fato de eu ser negro — afirma o denunciante.
Responsável da loja diz não ter cometido ato discriminatório
A loja na qual Pereira foi atendido na quarta-feira é a Hidroluz, comércio familiar atuante há 20 anos na cidade. Segundo a responsável, Dionir Bridi, que estava na loja no dia da ocorrência, o atendimento a Pereira foi realizado sem nenhum tipo de discriminação.
— Quando ele entrou, os rapazes já entraram junto. Eles não são seguranças e não os chamamos. Minha filha e eu atendemos o seu Ariel da mesma forma que atendemos qualquer cliente, passamos orçamentos e ele foi embora — relata Dionir.
Ela afirma que, somente depois que Ariel saiu, os dois homens comentaram que haviam percebido que Pereira estaria observando a loja e que, por isso, teriam acompanhado o atendimento.
— A gente não estava sabendo de nada, eles que pensaram que o rapaz ia assaltar a loja — garante.
Vítima vai recorrer à Justiça
Pereira pretende representar judicialmente contra os envolvidos, com acusação de crime de racismo e ameaça.
— Após conclusão da investigação policial o caso será encaminhado ao judiciário e, posteriormente, ao Ministério Público porque a ação no crime de racismo é pública e incondicionada — afirma a advogada Gisele Mendes Pereira, que prestará assistência à acusação.
Visibilidade aos casos
A morte do afro-americano George Floyd pelas mãos da polícia estadunidense, em maio, desencadeou o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) que ganhou visibilidade mundial na defesa da igualdade racial. No início de agosto, o caso do motoboy Matheus Pires Barbosa, que sofreu ofensas raciais do morador de um condomínio de Valinhos, no interior de São Paulo, também teve repercussão após vídeo compartilhado nas redes sociais. As duas situações exemplificam casos de violência contra negros que se repetem diariamente, em diversos lugares.
De acordo com o Atlas da Violência 2019, 75,5% das pessoas assassinadas no Brasil são negras. No período de uma década (2007 a 2017), a taxa de assassinatos contra pessoas negras cresceu 33,1%.
— O que aconteceu com o Ariel não é isolado, o racismo é estrutural. Milhares de negros sofrem isso todos os dias e o preconceito acaba sendo naturalizado. A gente não pode achar que é normal uma pessoa negra sofrer discriminação — enfatiza o historiador e coordenador do Núcleo de Acolhimento à Diversidade da UCS, Lucas Caregnato.
Em Caxias do Sul, uma das frentes de atuação pela visibilidade à população negra é a Coordenadoria de Promoção de Igualdade Étnico-Racial, vinculada à Secretaria de Segurança Pública e Proteção Social. A titular, Alessandra Pereira, afirma que, nem sempre, a vítima consegue ter clareza do fato, ou mesmo buscar os canais para denúncia, sendo este amparo e acompanhamento um dos serviços prestados pela coordenadoria.
— Nestes casos o que podemos fazer é orientar a pessoa para que faça a denúncia e represente contra o autor do crime. A gente sabe que prisão não é a solução, mas é importante que percebam, a partir da abertura do processo, que precisam responder pelos atos de racismo — comenta Alessandra.
— A melhor "punição" seria estudar a cultura afro-brasileira, acompanhar os movimentos de bairro, para que conhecessem e percebessem que a gente é igual — completa.
Por meio do projeto Diversidade desenvolvido junto às escolas do município — temporariamente suspenso em função da pandemia — a coordenadoria promove a visibilidade negra junto aos estudantes, com a apresentação de personagens negros que fazem parte da história do Brasil.
Virtualmente, o setor colabora com a página Vidas Pretas, no Instagram, criada por estudantes do curso de Psicologia da Faculdade da Serra Gaúcha com o intuito de ecoar as vozes da população preta de Caxias do Sul.
A coordenadoria atende pelo telefone (54) 3218-6000, ramal 6418.