A pandemia colocou em evidência a fragilidade da cadeia de reciclagem de Caxias do Sul. Com 250 trabalhadores diretos, responsáveis pela renda de cerca de mil pessoas, as associações de recicladores chegaram ao ponto de precisar arrecadar dinheiro na comunidade para pagar contas de água, luz e aluguel das sedes. Embora a fase mais grave tenha passado, com galpões novamente abertos e estabilização no preço pago pelo material reciclado, o momento pede soluções duradouras para a categoria que garante destinação adequada aos resíduos que a cidade produz.
A principal demanda de 12 associações de recicladores junto à prefeitura diz respeito ao pagamento das contas fixas dos galpões. Segundo Adroaldo Flores, da Cinquentenário, o corte no gasto fixo, caso houvesse isenções de água e luz, garantiria mais dinheiro para a partilha – valor dividido igualmente entre os associados, que caiu de R$ 1 mil para até R$ 700, dependendo da associação.
Outra reclamação diz respeito à entrega dos materiais pela Codeca. Segundo Adroaldo, a companhia mudou o cronograma das descargas há três meses sem avisar as associações. Com isso, o trabalho caiu para três dias por semana na Cinquentenário e na Associação de Recicladores e Carroceiros Aeroporto (Arca), por exemplo. A representante da Arca, Suelen Freitas, conta que, dos 20 associados, seis estão afastados do trabalho por serem considerados grupo de risco ao coronavírus. Mesmo assim, continuam recebendo a partilha, que vem sendo prejudicada pelo volume do material.
– A gente fica magoado porque não é reconhecido. Claro que a gente sabe que o pessoal da saúde é muito importante nesse momento, mas a gente também é linha de frente. O poder público sabe que a gente não vai cruzar os braços porque a gente sobrevive disso. Não queremos mais pessoas desempregadas –desabafa Suelen.
Contrapontos
O que diz a Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Emprego:
O secretário Gilnei Garcia Lafuente, afirma que a pasta aguarda a suplementação de verba ser liberada pela Secretaria de Gestão e Finanças para que a prefeitura possa assumir as contas de energia elétrica e isentar a cobrança de água das associações. Na segunda-feira (27), a previsão era de 15 a 20 dias para a liberação do dinheiro.
O que diz a Codeca:
Em relação à distribuição dos resíduos, a Codeca "explica que não houve mudanças na distribuição de cargas e que o volume se mantém. A única alteração é referente ao número de entregas, que foi readequado para evitar deslocamentos com pouca carga às reciclagens. Como se observa em todos os invernos, o volume de material recolhido pela Codeca diminui e ainda pode haver influência do número de catadores autônomos nas ruas".
Soluções a longo prazo dependem de articulação
Tanto o problema da falta de dinheiro como da quantidade de material poderiam ser amenizados por uma mudança de paradigma. Já existem modelos de cadeias de reciclagem no Brasil que reconhecem as associações como prestadores de serviço do município. Os trabalhadores deixam de depender de subsídios e passam a ser remunerados de forma fixa. O engenheiro ambiental Robson Tadeu Bolson, que trabalha com as associações, explica que a nova maneira de organizar a cadeia passa pela revisão do Plano Municipal de Resíduos Sólidos.
– Queremos propor a implantação de alguns modelos que já existem, onde os municípios reconhecem esse serviço como parte do saneamento. A gente entende que é um trabalho de limpeza urbana e serviço ambiental por, entre outras coisas, evitar o esgotamento dos aterros – cita.
Bolson menciona como exemplos contratos de coleta seletiva solidária, logística reversa e pagamento por serviços ambientais urbanos implantados em cidades como Belo Horizonte e São Paulo. A mudança seria o primeiro passo para ressignificar a imagem dos recicladores e garantir uma remuneração melhor, amenizando a instabilidade da categoria, que não conta com direitos trabalhistas.
– A ideia é que os recicladores não precisem apelar para a solidariedade. A gente agradece imensamente o apoio da sociedade, mas o dinheiro de uma vaquinha é suficiente para pagar as contas de um mês, por exemplo. E eles não reciclam mais porque não têm condições melhores de trabalho.
Recicladores e o engenheiro concordam que é preciso rearticular um grupo de trabalho da cadeia produtiva da reciclagem que conte com a participação efetiva da prefeitura. Com as demandas organizadas, eles acreditam que seja possível avançar nas soluções.
– Os recicladores são hoje a parte mais importante da cadeia, porque fazem a triagem, e são também o elo mais frágil, que ficam com o menor valor gerado pelo material. Com o respaldo da prefeitura e projetos estruturados, fica mais fácil conseguir um financiamento ou negociar com empresários – defende o engenheiro.
Projeto Dignidade está parado
No ano passado, uma iniciativa da prefeitura chegou a sinalizar uma solução para o problema do volume e da qualidade dos materiais. O projeto Dignidade consistia em firmar parcerias com empresas da cidade para que resíduos seletivos fossem destinados diretamente às associações por meio da Codeca. Segundo o secretário do Desenvolvimento Econômico, o andamento esbarrou na falta de adequação ambiental, já que há diferença nas exigências para triagem de lixo doméstico e industrial.
– Foi dado um tempo para que as 12 associações se adequassem à legislação e os convênios pudessem ser formalizados – justifica Lafuente.
Uma das metas do projeto Dignidade era direcionar catadores informais às entidades – conforme a crise econômica se agrava, é cada vez mais comum encontrar quem busque recicláveis nas ruas, antes da coleta da Codeca. No entanto, para as associações, essa atividade não tem um impacto tão significativo no volume dos materiais.
– Catadores sempre vão existir, são pais de família que precisam colocar comida dentro de casa. O carrinho, a carrocinha, nunca vão nos atrapalhar. O problema são caminhões patrocinados por empresas que vêm até de outras cidades e recolhem o material antes de a Codeca passar. Esses, sim, a prefeitura deveria fiscalizar – defende Adroaldo.
COMO AJUDAR
:: Embora trabalhem expostos à insalubridade desde antes, os recicladores passaram a usar máscaras só depois da pandemia, e os equipamentos chegaram através de doações. A iniciativa Máscaras Solidárias Caxias, que já distribuiu seis mil unidades na cidade, forneceu 400 equipamentos a pedido das associações.
:: A partir desse contato inicial, os voluntários perceberam que as necessidades iam além da pandemia, com a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs).
:: A iniciativa arrecadou produtos de limpeza e R$ 1 mil destinados à compra de luvas. Segundo a estudante de Serviço Social Andressa Campanher Marques, a iniciativa pretende estender as ações, com o objetivo de ajudar a ressignificar a imagem da categoria.
:: Quem puder colaborar pode entrar em contato pela página do Facebook Máscaras Solidárias Caxias ou pelo telefone (54) 99199-7730.