Especialistas temem que a suspensão e redução de consultas, exames e procedimentos em função da pandemia leve a uma explosão de casos de câncer em estágio avançado nos próximos meses, quando as chances de cura são menores. Preocupados, pesquisadores da University College London fizeram um levantamento que aponta uma redução de 76% nos encaminhamentos urgentes de pessoas com suspeita de câncer. Os cientistas calculam ainda que, nos próximos 12 meses, ocorram 6.270 mortes entre pacientes com novo diagnóstico de câncer – um aumento de aproximadamente 20% em relação ao ano passado.
No Brasil, ao menos 50 mil pessoas deixaram de ser diagnosticados com câncer devido à pandemia. Outros milhares de pacientes que já tem o diagnóstico com o tumor detectado tiveram os tratamentos suspensos. Além disso, cerca de 70% das cirurgias foram adiadas somente em abril. O levantamento foi realizado pelas Sociedades Brasileiras de Patologia e de Cirurgia Oncológica.
– Em um momento tão delicado é preciso focar no que é essencial: a vida das pessoas. É inaceitável que pessoas com suspeita de câncer fiquem em casa. Precisamos com urgência de uma diretriz ministerial, estadual e municipal dirigida a pacientes com suspeitas de câncer ou em busca de atendimento. As orientações precisam ser claras, com direcionamento, para que possamos evitar o colapso nos próximos meses – afirma Maira Caleffi, presidente voluntária da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama).
Não há um levantamento oficial do impacto na Serra gaúcha mas, para se ter uma ideia, dois dos maiores centros de patologia de Caxias do Sul apresentam redução no número de exames, se comparado ao mesmo período de 2019. Tanto o Centro de Patologia Médica (CPM), quanto o Diagnose atendem a rede pública e privada e realizam exames em pacientes da região.
– Tivemos uma queda de 77,32% de diagnósticos de câncer. O medo de contrair a covid-19 ou de infectar parentes e amigos faz as pessoas evitarem as consultas médicas, mas as outras doenças continuam seguindo o curso natural. O tempo ideal de diagnóstico inicial de alguns tumores certamente foi perdido e ainda não temos uma dimensão das consequências – ressalta Floriano Riva Neto, especialista em patologia oncológica do CPM.
O médico patologista Guilherme Portela Coelho, do Grupo Diagnose, também teme o impacto nos próximos meses:
– Se continuarmos subdiagnosticando os novos casos de câncer corremos o risco de termos que enfrentar uma epidemia de casos avançados, com impacto na saúde das pessoas e nos já escassos recursos do nosso sistema de saúde.
Segundo o especialista, pode ocorrer um aumento de cerca de 50% nos casos onde não será possível prevenir o desenvolvimento de câncer de colo uterino, por exemplo. Ou, ainda pior, de diagnosticar este tipo de câncer em estágio avançado.
Cenário preocupa especialistas
O cenário preocupa os médicos, principalmente em relação aos casos suspeitos que deixam de ser diagnosticados. A oncologista Janaina Brollo afirma ter notado uma redução na procura dos pacientes para dar seguimento aos exames, fundamentais no aumento das possibilidades de cura e tratamentos acessíveis.
– Notamos que muitas pessoas estão deixando de fazer os exames de rastreamento, como papanicolau, mamografia e colonoscopia em função da epidemia – aponta.
O mastologista Maximiliano Cassilha Kneubil afirma que há pacientes que não podem esperar pelo diagnóstico porque isso interfere na chance de combate ao tumor. Segundo ele, no caso do câncer de mama a paciente que chega até o médico com um diagnóstico inicial tem 95% de chance de cura. No entanto, caso ocorra metástase será necessário um tratamento mais agressivo.
– Há uma preocupação real que daqui há alguns meses enfrentaremos uma epidemia de câncer em estágios avançados, inoperáveis, com baixa chance de cura. Vivemos em um cenário de guerra e as medidas exigiram cancelamentos de consultas, exames, procedimentos e cirurgias. Está na hora de retomar a rotina dos pacientes diagnosticados e dos que têm suspeita porque corremos o risco de pagar um preço muito alto.
Pacientes tem que seguir tratamento
O Secretário da Saúde de Caxias, Jorge Olavo Hahn Castro, lembra que com a pandemia, por meio de decreto, todos os serviços eletivos foram cancelados ainda em março, para reduzir o risco de contágio pela covid-19. Em abril, alguns atendimentos foram retomados, com 50% da capacidade para não prejudicar os pacientes. Em relação ao câncer de mama, por exemplo, um dos mais letais entre as mulheres, ele esclarece que o município realizava 1.589 mamografias mensais. Com a pandemia, o número baixou para 980:
– Temos conseguido manter as pessoas contaminadas isoladas, assim as possibilidades de adquirir a infecção são pequenas. Os pacientes que têm diagnósticos, estão em tratamento ou com sintomas não podem esperar. Há preocupação com o represamento, por isso gostaríamos que as pessoas continuassem com os serviços de rotina nas UBSs e que procurem atendimento. Há casos que não podem ser deixados para o último momento.
CENTROS DE REFERÊNCIA
Em Caxias, há dois centros de referência para tratar o câncer: o Instituto do Câncer do Hospital Pompéia (Incan) e a Unidade de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon) do Hospital Geral (HG). Entre os serviços estão o diagnóstico, consultas, quimioterapias, cirurgias, tratamentos, biópsias e pesquisas clínicas. A coordenadora médica da Unacon, Rita Costamilan, afirma que a unidade manteve os atendimentos aos pacientes em tratamento e aos novos casos.
– Em abril, o número de casos novos foi maior do que em março porque o diagnóstico já estava feito, mas nos próximos meses a expectativa é de redução, talvez em estágios mais avançados. Neste momento precisamos alinhar medidas e retomar os exames. Os pacientes que estão em dia e sem sintomas podem aguardar um outro momento. Mas os sintomáticos, com redução de peso, perda do apetite, sangramentos e falta de ar não podem esperar passar a pandemia – alerta.
No Incan, os pacientes que fazem quimioterapia ou que precisam iniciar o tratamento seguem em atendimento. O hematologista e coordenador do Instituto Tiago Daltoé ressalta que ninguém irá perder a chance de ser curado:
– Temos avaliado cada prontuário para garantir atendimento e tratamento a quem precisa e não pode ficar sem acesso à quimioterapia. Não podemos colocar a saúde deles em risco.
Ele explica que as médias das internações, do número de quimioterapias e de pacientes em tratamento não diminuíram. Contudo, existe a preocupação com os casos que deixaram de ser diagnosticados.
– Nesses casos podemos enfrentar uma evolução da doença daqui alguns meses, com casos em estágio avançado.
NÚMEROS
Unacon
Fevereiro: 24 novas consultas e 40 cirurgias
Março: 34 consultas novas e 36 cirurgias (7% dos pacientes com consultas agendadas não compareceram)
Abril: 50 consultas novas e 26 cirurgias (13% dos pacientes faltaram na primeira consulta)
Incan
Sessões de quimioterapia
Média/mês em 2019: 964
Média/mês em 2020: 1.024
Pacientes em tratamento
Média/mês em 2019: 1.107
Média/mês em 2020: 1.192
Internações para quimioterapia
Média/mês em 2019: 126
Média/mês em 2020: 139
EXAMES TÊM QUEDA ACENTUADA
Mamografias pelo SUS
O número mensal caiu de 1.589 para 980 com a pandemia. Destas, 200 pacientes não compareceram para fazer o exame, e outras 200 nem chegaram a marcar.
Diagnose
Colo uterino
Abril/2019: 36
Abril/2020: 15
Redução de 58,33%
Mama
Abril/2019: 35
Abril/2020: 17
Redução de 51,43%
Próstata
Abril/2019: 38
Abril/2020: 12
Redução de 68,42%
Na área de diagnóstico de câncer gastrointestinal (esôfago, estômago e intestino), por conta da interrupção de procedimentos de endoscopia, os dados apontam para uma redução próxima de 40%.
Centro de Patologia Médica (CPM)
Queda de 77,32% de diagnósticos de câncer