Acabar com a miséria do Haiti e mudar a forma de pensar de um povo que historicamente sofre com problemas cotidianos e, volta e meia, é abalado por fatores extras que potencializam as dificuldades de famílias inteiras talvez ninguém jamais consiga. No entanto, melhorar, mesmo que minimamente, a qualidade de vida de uma parte dessas pessoas é possível. Pelo menos na ótica do frei capuchinho Aldir Crocoli, 71 anos. Nascido em Mato Perso, localidade no interior de Caxias do Sul, ele é o idealizador de um projeto que promete, primeiramente, limpar o país caribenho e, ao mesmo tempo, dar melhores condições de vida à sofrida população.
Em dois anos de envolvimento diário e contando com doações vindas de diversas partes do mundo, ele angariou cerca de US$ 800 mil (aproximadamente R$ 4,4 milhões) para dar o start no que pode ser considerada como uma revolução para a capital Porto Príncipe, cidade de 4 milhões de habitantes. Crocoli deixou Caxias do Sul em 2014 para coordenar os freis capuchinhos no Haiti. E teve o estalo, que hoje se transformou em propósito de vida, em 2016.
– A ideia surgiu do impacto que tive desde o primeiro instante. Tu entras no país, pisa no solo e o que se vê é muito plástico. Isso dá uma impressão horrível. Mas nunca imaginei que faria uma coisa dessas (projeto). Em dezembro de 2016, estudei o documento do Papa sobre a ecologia, chamado Laudato Si’. E aquilo me soou como uma provocação: tenho que fazer alguma coisa – conta.
O “fazer alguma coisa” envolve muita coisa. Basicamente, frei Aldir vislumbra retirar 1,5 mil quilos de plástico das ruas de Porto Príncipe. Por dia. Aí é que entra o “glamour” da ideia, pois não se trata simplesmente de encaminhar o material para a reciclagem. No final do processo, o lixo recolhido volta às ruas, mas em forma de telhas e tijolos, que no futuro ajudarão na construção de casas populares.
– Hoje, 80% dos haitianos são desempregados ou vivem da economia informal. Cada um se vira como pode e consegue uns troquinhos para sobreviver. Todo mundo lá pensa em progredir. Mas não tem como. Os mais jovens fogem do Haiti. Esse projeto vai dar comida e emprego para 100 pessoas e produzir um produto de primeira necessidade para ajudar muita gente. Todos vão poder recolher o plástico das ruas e nos vender. O Haiti, hoje, é uma grande lixeira e todos vão perceber que a cidade está ficando limpa.
Frei Aldir vai pagar seis Gurdas (moeda haitiana), o equivalente a R$ 0,30, por quilo de plástico que receber assim que o projeto estiver em funcionamento. Devido à pandemia do coronavírus, algumas etapas do projeto precisaram ser adiadas.
– Se pagássemos a metade disso, eles recolheriam da mesma forma. O salário lá é muito baixo, quem ganha US$ 100 por mês já pode se considerar feliz. E nós vamos pagar US$ 120. Ou seja, ele vai ganhar tanto ou mais que um funcionário de fábrica. Em 10 anos, nossa ideia é mudar, pelo menos um pouco, a capital do Haiti.
Boa parte do dinheiro arrecadado vem de doações de pessoas simpatizantes do projeto no mundo inteiro (US$ 170 mil), além de entidades de ajuda humanitária. O grosso da verba, que custeará as máquinas produzidas no Rio Grande do Sul e que serão exportadas para o Haiti, vem do Vaticano, da Conferência Episcopal Italiana (US$ 380 mil). Além disso, as ONGs Manos Unidas e Misereor também auxiliarão no projeto. Só durante o tempo em que permaneceu de férias no Brasil, no início do ano, Crocoli arrecadou mais de R$ 6 mil com amigos.
– Começamos esse projeto com 0,0 dinheiro. Tudo foi montado em cima de financiamentos ou doações. Os triciclos e o caminhão para ajudar no recolhimento, por exemplo, virão de uma organização de bispos de Alemanha. Tudo é doado. A gente vai começar a trabalhar e não precisamos pagar ninguém por enquanto. Só temos que nos manter. Esse é o nosso compromisso. A indústria se autofinanciará – explica o frei.
E antes mesmo de colocar a mão na massa, ou melhor, no plástico, frei Aldir tem até clientes. A Missão Belém, comunidade religiosa que atua em diversas partes do mundo, deu início a um projeto para a construção de mil casas populares na beira-mar de Porto Príncipe. E anunciou que pretende utilizar as telhas produzidas no projeto. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) firmou parceria com o governo haitiano para a construção de 80 grandes escolas e sinalizou que também espera pelo material.
– Vamos produzir telhas, telhas e mais telhas. Depois disso, se tivermos pernas, vamos fazer tijolos. É uma segunda etapa, mas podemos começar. No final, a ideia é construir a casa toda. Podemos fazer estruturas, piso, paralelepípedo, tudo. Eu virei um operário desse projeto. Vivo 24 horas em cima dele nos últimos anos. Eu só pensei: ao invés de rezar missas, ajudaria muito mais se fizesse algo nesse sentido. Me sinto realizado.
Um país que vai além da miséria
O projeto de Aldir Crocoli chega ao Haiti 10 anos depois do terremoto que devastou o país caribenho, em 12 de janeiro de 2010 e deixou cerca de 300 mil mortos e 300 mil feridos. O fenômeno de magnitude 7 na escala Richter teve epicentro na península de Tiburon, a cerca de 25 quilômetros da capital Porto Príncipe, e deixou 1,5 milhão haitianos desabrigados.
Considerado até hoje o quinto mais violento da história mundial, o terremoto agravou de vez as condições de miséria do país mais pobre das Américas. E como se desgraça pouca fosse bobagem, a população ainda teve que conviver, 10 meses depois, com um surto de cólera, responsável por matar cerca de 10 mil haitianos. Sem falar na pandemia do coronavírus, que provocou um pânico a mais no país. Os primeiros dois casos foram confirmados em 19 de março. Felizmente, a situação está controlada – hoje, são 958 casos e apenas 27 mortes. Não bastasse isso, o Haiti também enfrenta frequentemente ondas de violentos protestos contra a situação política, econômica e social. Atualmente, 70% do povo haitaiano vive com renda menor que US$ 2,4 por dia e a economia informal movimenta o país.
– Geralmente as mulheres, com cestas de vime ou palha, vão ao mercado e compram mantimentos para revender na rua. O haitiano não tem iniciativa, visão e nem gosto pelo trabalho. Mas isso nem é culpa deles, já que 99% das pessoas são descendentes de escravos. Para eles, o trabalho era a pior coisa que poderia existir. Os que vêm para cá (para o Brasil) precisam sobreviver e por isso se esforçam. Lá, eles esquecem de crescer.
Parceiros brasileiros foram fundamentais para o projeto
A empolgação de frei Aldir contagiou os principais parceiros brasileiros do projeto. A começar por quem será a responsável por desenrolar todos os trâmites burocráticos para a exportação do maquinário para o Haiti. Um contêiner, com máquinas auxiliares, como gerador, compressor e outros acessórios, foi enviado ainda em dezembro do ano passado e já desembarcou em Porto Príncipe. O envio do “coração do projeto”, que estava previsto inicialmente para abril, acabou protelado para 8 de junho devido à pandemia do coronavírus.
– São atitudes e projetos como estes que geram impactos e transformações. É gratificante contribuir. Compramos insumos de mais de 12 empresas e todas abraçaram com carinho o projeto. Todos estão trabalhando para que tudo dê muito certo e que possa servir de exemplo, pois também temos situações de miséria no Brasil e em outros países do mundo – destaca Milena Zucchetti, proprietária da caxiense Growover Negócios Internacionais, responsável pela negociação e compra dos equipamentos no Brasil, cronogramas e entrega, operação logística e efetivação da exportação.
Antes de virar telha ou tijolo, o lixo coletado passa por um processo que envolve cinco grandes máquinas, todas produzidas pela Veiga Sul e que ainda estão em fase final de testes em Novo Hamburgo, sede da empresa, antes de embarcarem para a capital haitiana. Basicamente, todo o resíduo é moído e seco antes de entrar em um misturador. Lá, é criada uma massa homogênea. Neste ponto, há dois caminhos. O primeiro é seguir para uma prensa, que fabrica tijolos e cumeeiras. O segundo é a transformação em chapas, que posteriormente viram telhas com o auxílio de uma prensa contínua.
– A ideia é reaproveitar resíduos que não têm valor de mercado. Ou seja, não é o foco da garrafa pet. São sacolas de mercado, plásticos dobrados com tinta, têxteis... Tudo isso pode entrar na máquina para ser misturado e se transformar em um material altamente resistente e durável – explica o diretor-comercial da Veiga Sul, Jacó Pohen, destacando que a empresa também produziu máquinas específicas para o projeto e enviará profissionais ao país para acompanhar os primeiros dias de trabalho.
Conforme ele, as máquinas que serão enviadas ao Haiti têm capacidade para produzir em torno de 1,5 mil quilos de material por dia. Por hora, ele garante que 25 telhas sairão prontas para serem utilizadas.
– Isso vai além da questão financeira. Eu trabalho nesse projeto há dois anos e notamos o esforço dele (frei Aldir Crocoli) para conseguir tornar realidade tudo o que vislumbrou no início. Sem falar na geração de renda para quem precisa, para os mais pobres, de um país que vive na miséria. Além disso, na outra ponta ele está dando oportunidade para as pessoas adquirirem produtos para a construção por preços razoáveis e competitivos – destaca Pohen.
AS MÁQUINAS
:: Moinho ou triturador
- Na primeira parte do processo, a máquina é utilizada para moer os resíduos para reduzir de volume. Ele deverá triturar em torno de 150 quilos de plástico por hora ou mais de uma tonelada diária.
:: Aquecedor rotativo
- Máquina responsável por secar os plásticos antes de entrarem no misturador.
:: Misturador fechado
- É a máquina mais importante do processo. Ela desmancha o plástico, formando uma espécie de massa homogênea, sem adição de qualquer produto químico. Produz uma média de 25 quilos de massa polimérica, o que permite fazer ao menos 700 blocos por dia.
:: Prensa horizontal
- Dá forma ao produto e é utilizada para a fabricação de tijolos e cumeeiras. Em seis minutos de prensagem, o produto esfria o suficiente para ser retirado e está pronto para a venda ou para receber algum tipo de acabamento.
:: Extrusora (com prensa contínua)
- Máquina utilizada exclusivamente na fabricação de telhas que será o carro-chefe do projeto. É um conjunto de máquinas: uma para esquentar a matéria-prima, outra para formar a lâmina plana, outra para formatar as canaletas e uma guilhotina para cortar a telha na dimensão planejada.