Lá na frente, Maria Tieppo certamente terá de recorrer aos pais e avós para entender um pouco da estranheza desses dias de coronavírus. Talvez venham cenas na memória sobre uma pandemia que colocou o planeta inteiro de joelhos e, ao mesmo tempo, transformou o domingo, 22 de março, numa data muito mais do que especial para ela.
A menina comemorou o seu aniversário de três anos isolada dos amiguinhos, dos padrinhos e de outros familiares. Ao lado dos pais em um apartamento no bairro Cruzeiro, soprou as velinhas, saboreou bolo de chocolate e viu parentes de três Estados diferentes cantarem parabéns pela tela do celular. A quarentena de Maria é cena repetida em milhões de lares. A festinha inusitada provocou na menina uma emoção que provavelmente não fosse tão forte se tivesse sido pessoalmente.
— Minha filha, em algum momento na semana passada, chorou e ficou com medo do coronavírus. Estava chateada que uma amiguinha não viria na festa. Mas ao ver a sala decorada e tantas pessoas cantando parabéns, ficou feliz de um jeito que a gente não esperava — conta a mãe da criança, a acadêmica de Educação Física Paula Fernandes Moreira Bastos, 37.
O impacto psicológico do isolamento social de 34% da população mundial — estimativa é de 2,6 bilhões de pessoas em quarentena desde a madrugada desta quarta-feira com a inclusão da Índia — ainda está na fase dos debates e dos aconselhamentos. Mas o tema requer, de imediato, muita cautela e sensibilidade com as crianças e aos adolescentes. A principal orientação é não instigar medo, mas transmitir segurança nas explicações sobre a necessidade de distanciamento e higiene. Há também o desafio de não transformar o isolamento em casa em um tédio sem fim.
Maria e Paula estão protegidas no apartamento há 10 dias. Ficaram para trás as brincadeiras no parquinho, o contato com os amigos e os passeios pela rua. Lidar com a saudades virou regra fundamental. O único que tem saído de casa é o pai da menina, o farmacêutico Maurício Tieppo, 41, função essencial nesse período conturbado. Na volta para o lar, Tieppo precisa seguir um protocolo de segurança, situação avessa na rotina de Maria. Se antes o reencontro de pai e filha envolvia abraços e brincadeiras ainda na porta de casa, esse contato só ocorre após o farmacêutico entregar a roupa numa sacola para a esposa e passar pelo chuveiro. A mãe explicou porque o afago precisa esperar e a criança parece ter entendido.
Logo no início das primeiras medidas de contenção, que levou ao fechamento de escolas, Maria questionou a mãe se coronavírus um dia iria embora. Paula sabe que é difícil falar sobre um tema complexo para uma menininha e usou da criatividade para engajá-la na prevenção e tornar o processo menos complicado.
— Um dia peguei dois pratos. Num, coloquei água e sabão. No outro, água e orégano, para representar bichinhos. Pedi para minha filha molhar as mãos nesse prato e o orégano grudou na mão. Em seguida, ela colocou as mãos na água com sabão e os bichinhos desgrudaram. Foi uma forma de ela entender o que precisa ser feito — descreve Paula.
A família havia programado a festa de Maria para o último domingo, mas mudou os planos repentinamente com o surgimento de decretos restritivos em sucessivas cidades. A avó e o bisavô da criança viriam de Florianópolis (SC) e abortaram a viagem. Amigos e parentes de Caxias do Sul ou cidades próximas também seguiram o caminho da prudência. O casal e a filha também não tiveram como receber em casa os familiares que residem no mesmo prédio. No domingo, para não deixar a data em branco, os pais prepararam um churrasco. Após o almoço, a criança dormiu. Paula aproveitou para embelezar a sala com os adereços que havia guardado da festa de dois anos da filha. Quando a menina acordou, ficou surpresa com a decoração e a torta de chocolate que havia ajudado a preparar. O maior presente foi o parabéns, aliás, os vários parabéns. Foram pelo menos três videoconferências pelo WhatsApp e cada uma delas teve a participação de pessoas de diferentes cidades ao mesmo tempo, incluindo um familiar da Espanha. Foi um mutirão de alegria num momento de tensão.
— Essa sequência deixou minha filha mais feliz. Foi inesquecível — lembra Paula.
Criatividade
A aprovação de Maria mostra que os dilemas forçados pelo coronavírus não precisam ser tratados como bichos-papões na infância e tampouco devem ser suavizados a ponto de soarem irreais.
Assim como Paula e Maurício, outras famílias se esforçam para manter os pequenos ocupados durante o confinamento. Mãe de Miguel, dois anos, a influenciadora digital na área da maternidade Larissa Rizzon, 33, diz que o maior desafio tem sido criar uma nova rotina diante das limitações de tempo e espaço. Ela segue trabalhando por meio de ferramentas virtuais e se desdobra para cuidar do pequeno. A sacada do apartamento virou o local para brincar de amarelinha, uma piscina foi improvisada no banheiro e também é preciso achar tempo fazer espetinhos de frutas para o lanche. Tudo com apoio do marido Rafael Lisot, 36.
— Entre as preferidas dele (de Miguel) está o laboratório de yoga, então tento todos os dias fazer um pouco com ele, que acaba fazendo bem para todos aqui em casa. O mais importante é não dar tudo junto e tentar conter a nossa ansiedade, porque acaba passando pra eles. É tentar viver um momento de cada vez. Dar tempo para o ócio e para o tédio também são fundamentais para cuidar da nossa saúde emocional — sugere Larissa.
Vírus no lado de fora
Muitas escolas prepararam os alunos para o recesso e programaram atividades à distância para que alunos não fiquem parados em casa. Na última semana, antes da interrupção das aulas, a prevenção foi abordada em rodas de conversa com alunos da Educação Infantil da Cataventura. A equipe utilizou um covibook, material criado pela psicóloga infantil colombiana Manuela Molina e que está disponível gratuitamente na internet. Com linguagem simples e imagens lúdicas, a escola quis fazer com que as crianças fossem veiculadoras da informação e prevenção. O grupo conversou sobre a necessidade de ficar em casa e de como é importante ter cuidados para todos se reverem em breve.
— A partir dessa preocupação, a coordenadora pedagógica da escola dirigiu uma atividade de dobradura, na qual cada criança recortou e dobrou sua casa de papel. Nela, as janelas ficavam abertas para ventilação e troca do ar. As crianças desenharam o coronavírus fora da casa e uma proteção para ele não entrar — conta Laina Brambatti, diretora pedagógica da escola.
ORIENTE, MAS CONTROLE A ANSIEDADE
Tratar os reflexos da pandemia com crianças exige tranquilidade. Confira sugestões de duas profissionais:
NADABY PITES
psicóloga
Compreensão sobre a crise
— Os pais têm apavorado muito as crianças a ponto de eu já ter visto criança com quatro anos que não quer mais brincar no chão porque o bichinho vai pegar. A primeira atitude é parar e pensar sobre o que falar para não deixar as crianças mais preocupadas e apavoradas. A criança é ótima observadora, mas péssima intérprete. Como ela sai interpretando tudo isso? Está todo mundo morrendo? Não posso mais sair de casa? Temos de explicar de forma didática e tranquila. Se a criança não está cumprindo o combinado, não é para apavorar, brigar. Precisa sim passar a informação, mas lembrar que a questão da higiene é pra qualquer época do ano.
Contato com amigos
— O melhor seria não. Penso numa maneira lúdica para explicar: "Todo mundo aqui de casa tem um tipo de bichinho, na outra casa as pessoas têm outro tipo. Só que o outro bichinho não vai se dar bem com o nosso bichinho. Pode acontecer alguma coisa."
Não adianta tirar da escola e ter aglomeração na nossa casa. É necessário explicar que esse momento não vai durar para sempre. Quando a gente entra em sofrimento, independentemente da idade que se tenha, achamos que aquilo ali não vai passar, que será para sempre.
Ocupação saudável
— Sabe o ditado de que cabeça vazia é oficina do...? Se deixá-las meio que largadas, vão questionar, querer saber. As famílias podem entreter com atividades lúdicas. Convide ela para brincar com legos, ver um seriado, brincar com sucata. Vamos ficar 15 dias de isolamento e ficar somente falando em coronavírus? Não. É aproveitar esse momento para que fique uma herança positiva. Na escola que trabalho, antes de fechar, fizeram um projeto bem legal, onde as crianças passaram a mão limpa num potinho e na outro a mão suja. Observaram a questão dos germes. Dá para trabalhar isso com as crianças. Fica uma herança positiva.
Ruas vazias e isolamento
— Dá para dizer a real, mas de uma maneira não tão dura. Exemplo: foi orientado que as pessoas tinham que ficar em casa por causa do vírus e para não se contaminar, por isso tem menos pessoas nas ruas. O problema é quando o adulto entra em ansiedade. Se ele está nervoso, tem condições de falar sobre isso com seu filho? Então, acalme-se e organize-se para depois passar as informações. A criança não precisa saber que na China alguém pegou coronavírus de novo. O que isso vai mudar na vida dela? Não sou a favor de mentir, é filtrar as informações. Se os pais estão com alguma dúvida, contatem um profissional, de forma online. Daí tu consegue liberar essa ansiedade. Se os pais não estão bem, não estão passando segurança, esse filho não vai se sentir à vontade. Escutei de uma paciente de 15 anos que ela não estava apavorada, pois a mãe dela passou segurança, deu orientações. Não existe receita perfeita, mas estou bem para passar a orientação para o meu filho? Vale principalmente se os pais têm filhos ansiosos, porque o ansioso sofre por antecedência. Temos de limpar as mãos, mas a nossa cabeça também.
MARGARETH KUHN MARTTA
psicanalista e doutora em Educação
Conversa franca
— Com as crianças é muito importante conversar, falar sobre o que está acontecendo, sobre o vírus, como se deve enfrentar, que isso possa ser um cuidado conosco. Vale explicar do ponto de vista científico, mas com palavras que as crianças possam entender. Fale do soldadinho, que está no nosso corpo, que é o sistema imunológico, que ele vai tentar enfrentar esse vírus, mas que é importante que a gente possa ajudar esse soldadinhos lavando bastante as mãos, não se aproximando muito das pessoas, não dando beijos e abraços porque as pessoas muitas vezes podem estar com esse vírus, não saber e sem querer nos transmitir. É importante falar que é um trabalho de equipe, que médicos, cientistas estão tentando resolver.
Passar segurança
— Não se deve minimizar, dizer que nada está acontecendo. As crianças percebem que os adultos estão assustados, sabem que é sério. Então, tem que legitimar o que elas sentem. Isso deixa a criança mais segura, ela tem de ter certeza do que percebe e sente é verdadeiro. Se disser que não é nada, ela ficará insegura, vai achar que está vendo e pensando coisas que não são da realidade.
Rotina
— Em casa, é importante que tenham rotina, um plano dado pela escola, que a família possa fazer algum momento de estudo, que tenha um conteúdo didático, que tenha a ver com a escola. Se a escola não orientou, que os pais possam pegar algum material adequado à idade de cada criança. É importante que elas possam, se possível, ficar um pouco ao ar livre onde não haja aglomeração, como o pátio de casa, para que possam andar de bicicleta, brincar. É importante não ficar em excesso nos eletrônicos. E não se deve o tempo inteiro ouvir as notícias, pois isso gera um clima de pânico. Os pais podem filtrar as informações e manter uma rotina, que possa ter um período de estudo, de lazer, de brincar, que ela fique à deriva em casa, em frente à TV e a eletrônicos.
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