Sentença da 6ª Vara Cível de Caxias do Sul trouxe esperança para famílias que enfrentam a possibilidade de perder o patrimônio de uma vida numa disputa com uma empresa. Em decisão de primeira instância sobre um processo de usucapião, a Justiça determinou que o casal Bazílio Lemes dos Santos e Soleci de Fátima de Oliveira dos Santos permaneça como dono de um lote adquirido por eles no loteamento Cidade Industrial ainda nos anos 1980.
O desfecho favorável abre caminho para que outros moradores da comunidade possam continuar com suas propriedades. A disputa começou em 2015 quando representantes da Agropecuária Serra Verde procuraram diversas famílias do Cidade Industrial para reivindicar o pagamento ou a desocupação de mais de 50 lotes, o que provocou temor e indignação.
As famílias adquiriram as propriedades entre os anos 1980 e 1990 numa área verde loteada irregularmente próxima ao Km 72 da Rota do Sol (RS-122). Na mesma época da venda dos lotes, um processo foi aberto na Justiça de Caxias do Sul questionando a propriedade da área pertencente à agropecuária. A disputa envolvia acusações mútuas de fraude. Não ficou claro quem foi o responsável pelo loteamento. Alguns moradores dizem que a Agropecuária Serra Verde comercializou os imóveis, mas o dono sustentou na Justiça que a venda foi concretizada de forma ilegal por uma mulher e outras pessoas mediante falsificação de documentos da empresa.
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Enquanto a fraude era julgada, houve a regularização de lotes comprados pelos novos moradores via Justiça, no qual se emitiu o número de matrícula no cartório de imóveis. Contudo, o cartório anotou uma observação nas escrituras de que havia uma matrícula principal (em nome da Agropecuária Serra Verde) e que uma ação anulatória contra os novos registros tramitava na Justiça. Apesar disso, as negociações prosseguiram: muitas famílias compraram pedaços de terra e ignoravam a disputa judicial. O Cidade Industrial cresceu no entorno dos lotes irregulares. As famílias construíram casas, abriram comércio e serviços.
O processo da fraude transitou em julgado em 2013, com decisão favorável ao cancelamento das matrículas, tornando, em tese, sem efeito a propriedade dos atuais donos, incluindo Bazílio e Soleci. A Justiça também entendeu que houve falsificação de documentos da empresa que facilitaram a venda por meio de terceiros. Desde a conclusão desse processo da fraude, a Serra Verde tenta reaver os terrenos de volta ou fazer com que os moradores paguem novamente pelo que já investiram. Sob pressão, parte das famílias ingressou na Justiça para garantir o imóvel. O advogado Rodrigo Balen moveu um processo de usucapião a favor de Bazílio e Soleci e de outras 19 famílias. Até o momento, somente a ação do casal foi concluída.
A juíza Luciana Fedrizzi Rizzon avaliou as provas e decidiu como procedente o pedido de Bazílio e Soleci. A sentença também seguiu o posicionamento do Ministério Público, que havia aberto investigação na época e concluiu que os moradores eram possuidores de boa fé, uma vez que não invadiram ou ocuparam ilegalmente a área, mas sim adquiriram as propriedades sem estarem envolvidos na fraude apontada pela empresa. No caso, a magistrada entendeu que as famílias não podem responder pelo danos sofridos pela agropecuária, pois foram enganados pelos loteadores. No caso, eles têm direito ao usucapião pelo tempo prolongado de uso dos imóveis e falta de contestação anterior.
Luciana frisou também que os danos foram causados por pessoas que fraudaram compras e vendas e cessões de direitos, anuladas judicialmente. A empresa, portanto, deve buscar a satisfação de seus direitos com os supostos fraudadores por meio de uma ação indenizatória.
"Nunca invadimos, pagamos à vista, fizemos contrato"
Mesmo que a sentença possa ser revertida em outras instâncias, o sentimento de Bazílio Lemes dos Santos e Soleci de Fátima de Oliveira dos Santos é de vitória e de alívio. O casal adquiriu o lote em 1986 no Cidade Industrial por meio de uma negociação com uma imobiliária que já fechou. A residência atual, em frente à Escola Municipal Dezenove de Abril, foi construída há cerca de 20 anos, substituindo a primeira moradia. Foi ali que eles criaram os dois filhos. A notícia de que o bem poderia ir parar nas mãos de outros provocou um grande desgaste na família. Soleci entrou em depressão, precisou de tratamento e até hoje tenta se recuperar.
— Quando chegamos aqui, tinha três ou quatro moradores. Era só mato. Nós nunca invadimos, nós pagamos à vista, fizemos contrato. Quando apareceu essa carta aí (da empresa reivindicando o imóvel), foi um choque — conta Bazílio.
Na ocasião da compra, a imobiliária havia garantindo a entrega da escritura em 30 dias, o que nunca ocorreu. O casal optou por não ingressar na Justiça acreditando na promessa de resolução.
— Viemos do interior, somos do tempo que era assim: confiava na palavra. O que foi decidido agora (sentença judicial) é o certo. Não tomamos isso de ninguém — complementa Soleci.
Um dos argumentos do advogado Rodrigo Balen para obter a decisão favorável à família é de que, em mais de 20 anos, ninguém da empresa procurou o casal para falar sobre a suposta fraude. Eles também sequer haviam citados em qualquer ação na Justiça. Portanto, a família e outras na comunidade sempre tiveram a sensação de que a compra era regular, o que foi legitimando a sua posse.
— Tem-se elementos suficientes para constatar que a posse dos moradores do Cidade Industrial é de boa-fé, não podendo ser atingida pelas pretensões da Agropecuária Serra Verde. No entanto, é prudente ressaltar que esses moradores têm de legitimar documentalmente a sua posse, adquirindo a propriedade, por meio da ação de usucapião, nos mesmos moldes que Bazílio e Soleci — sugere Balen.
"A empresa quer vender por um valor justo"
O defensor da Agropecuária Serra Verde no processo envolvendo o Cidade Industrial informa que ingressou com recurso no Tribunal de Justiça (TJ) em cima da decisão de primeira instância. Samuel Silva aponta o que considera erro material na sentença e tentar reverter a decisão.
— A juíza afirma que a parte (Bazílio e Soleci) havia comprado o terreno antes do processo da ação anulatória (de fraude), antes de ser averbado na matrícula. Mas não. Vamos usar a jurisprudência. Ninguém pode requerer usucapião sobre algo que está sob tutela jurisdicional e suspensão de prazos.
Já teve quem comprou, pagou certinho e registrou escritura e foi cancelado. Quem compra mal, paga duas vezes — rebate o advogado.
Conforme Silva, outras famílias do Cidade Industrial serão notificadas sobre a ação reivindicatória. Segundo ele, são quase 100 imóveis nesta situação. O advogado, porém, ameniza e diz que a intenção não é retirar as famílias, mas negociar.
— A empresa que vender por um valor justo, para que todos possam pagar em parcelas.