Na ficção A Senhora, do consagrado escritor José de Alencar, Aurélia Camargo era uma mulher diferente para os padrões do distante ano de 1874. Era educada, inteligente e corajosa, mas prezava as aparências perante à sociedade.
Na vida real de Veranópolis, Millene Savaris, 16 anos, aprendeu que, 145 anos depois, nada mudou. Ao encarnar Aurélia numa peça de teatro diante de um impressionante público de 1,3 mil pessoas em duas noites de exibição na Sociedade Alfredochavense (Soal), a aluna do 2º ano do Ensino Médio da Escola AVAEC transmitiu conhecimento literário e desenvoltura atípica para a sua geração. Com convicção, Millene enfatizou à reportagem porque Aurélia é tão atual.
— É uma personagem de agora. A gente ainda vive num mundo em que estamos mais preocupados com que os outros pensam, com o status e o poder — pondera Millene.
Não fosse o projeto Literarte: literatura, arte e sabor, vencedor do Prêmio RBS de Educação na categoria Júri Popular Escola Privada e na homenagem especial Menção Honrosa Meio Ambiente, possivelmente a estudante não tocaria na obra de José de Alencar, produção só lida pelas novas gerações em função das exigências de professores. Talvez não tivesse interesse em William Shakespeare. Mas a iniciativa do Literarte mudou a curva na AVAEC e expandiu o amor aos livros para além dos muros da escola.
O projeto é aparentemente simples. Consiste em pegar um livro clássico e fazer com que a história transcenda a simples interpretação de texto entre os alunos do Ensino Médio. Neste ano, a inspiração foi o livro A Senhora. Em 2018, Hamlet incendiou a imaginação da gurizada.
O Literarte foi inscrito no Prêmio RBS de Educação pela professora e mestre em Literatura Silvia Maria Zanella, 35. Ela se diz apaixonada pela ideia e divide a coautoria com os demais professores.
— Geralmente, o aluno se vê pressionado a ler os clássicos em razão do vestibular, entre outras coisas. O projeto quer inspirar e motivar a leitura de uma forma mais prazerosa.
Os estudantes são desafiados a contextualizar o enredo e os personagens de forma interdisciplinar. Geografia, por exemplo, é excelente para mostrar como era o território brasileiro nos tempos de Aurélia Camargo. A música e a dança da Educação Física também podem expressar muita literatura.
Em sala de aula, os trabalhos são desenvolvidos para aprimorar o conhecimento, a autonomia e mudar até mesmo o comportamento. A iniciativa também inclui muitas atividades extraclasse. Mas não é só: professores, funcionários e familiares do alunos são estimulados a entrar no projeto de acordo com suas aptidões.
O incentivo à leitura na AVAEC vem de tempos e inclui a exposição dos lançamentos mais recentes que chegaram na biblioteca numa estante de vidro. Estrategicamente disposta num dos corredores, é um chamariz para gostos e idades variados. No fim, todos aprendem e se envolvem numa mobilização intensa que culmina com um espetáculo que reúne alunos de outras séries, resultando num presente cultural para uma cidade sem teatro ou cinema.
Veja vídeo sobre o projeto Literarte:
"Vieram pessoas de outras cidades para ver"
Os primórdios do Literarte eram mais modestos. Do início do projeto em 2013 e até 2017, as atividades ficavam restritas aos alunos do 1º ano do Ensino Médio. Alguns pais prestigiavam as apresentações no auditório da escola. Conforme a vice-diretora da escola, Graciele Bavaresco, os trabalhos foram crescendo e as famílias achavam um desperdício ver tanto esforço diluído apenas nos limites da escola, o que motivou a decisão de levar o espetáculo para a comunidade.
Na peça inspirada por Shakespeare, cerca de 500 pessoas esgotaram os ingressos e outras tantas ficaram de fora. A apresentação deste ano na Soal ocorreu em duas noites de julho, com ainda mais público. A renda da primeira noite foi revertida para a Associação dos Portadores de Deficiências São Camilo. Na mesma ocasião, os estudantes fizeram a entrega de uma cadeira de rodas, o que reforçou o aspecto inclusivo do projeto e a parceria com outra ações desenvolvidas pelos estudantes da AVAEC.
— Tinha mais de 1,3 mil pessoas na plateia. Vieram pessoas de outras cidades para ver — orgulha-se Graciele.
Silvia ressalta os vínculos afetivos produzidos pelo Literarte. As turmas se aproximam, os tímidos se soltam, o bullying vai perdendo espaço e os alunos estreitam os laços com professores e funcionários. A cozinheira Shirlei Duz Sbrissa aprendeu, na prática, como é ser uma contrarregra.
— É algo para a vida toda — diz a professora Silvia.
— Os estudantes perdem o medo — complementa a coordenadora pedagógica da escola, Jane Dal Paí Giugno.
A aproximação com a comunidade também foi responsável pela grande quantidade de votos recebidas pela escola. Os alunos fizeram grande campanha para conquistar a votação. O júri teve um total de 157.705 votos nas categorias Júri Popular Escola Privada e Escola Pública. No caso da escola pública, o projeto escolhido foi O Escrever Num Mundo Digitado, da Escola Municipal São José, de São Sebastião do Caí.
Redação mais qualificada
Se as atividades extraclasse são as mais visíveis para a comunidade, o reflexo mais palpável do Literarte é a evolução dos estudantes nas provas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Conforme Graciele Bavaresco, como os alunos aprofundam a leitura, os argumentos e os textos se qualificam. Em anos anteriores, a média na redação do ENEM era de 620, o que deixava a escola numa posição bem distante dos primeiros colocados no Rio Grande do Sul. Em 2018, o resultado foi muito melhor: a nota média subiu para 812, levando a AVAEC a conquistar a sétima melhor colocação no Estado.
— Nossa, os alunos estão lendo muito mais. Tu nota eles mais interessados nos livros — conta a auxiliar administrativa da biblioteca, Marli De Carli.
Com tanto estímulo, os talentos se sobressaem. João Diego Alberton, 17, que interpretou Hamlet na peça do ano passado, gosta de escrever poesias. Ganhou dois prêmios em diferentes edições da Feira do Livro de Veranópolis. Neste ano, colegas dele declamaram um texto inédito na mesma feira e o resultado foi um terceiro prêmio.
Nicoly Maragno, 15, cita as vantagens:
— Ajudou bastante tanto para o conhecimento, com mais uma leitura, de uma obra clássica, como agregou no lado pessoal, desenvolvendo a nossa oratória, nosso posicionamento diante do público. A boa convivência também faz com a que a gente desenvolva os projetos com mais ânimo.