As correntes migratórias de estrangeiros nos últimos 10 anos foram acompanhadas pelo surgimento de uma rede de amparo baseada muito mais na atuação de voluntários, igrejas e ONGs em Caxias do Sul. Apesar dos discursos, o poder público continua se isentando da incumbência de estabelecer políticas locais para proporcionar acolhimento e conduzir de maneira uniforme a trajetória de famílias que tentam fugir da pobreza e da perseguição política em seus países de origem. Essas brechas serão debatidas por representantes de instituições respeitadas no Brasil e no Exterior durante o simpósio Migração e refúgio à luz dos Direitos Humanos, que ocorre na segunda-feira no Bloco J da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
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Casados e tentando sair da invisibilidade
Carlos Alberto Cáceres González, 30 anos, e Luis Orlando Concepción González, 23, casaram na manhã de sexta-feira no Cartório de Galópolis. É mais uma etapa superada pelos dois cubanos refugiados no Brasil. Mas não está sendo fácil recomeçar a vida em Caxias do Sul.
— Estou um pouco desesperado, na verdade — admite Carlos, em tom pessimista.
Ele é clínico-geral e atuou entre 2017 e 2018 pelo programa Mais Médicos, boa parte do tempo no postinho de saúde de Galópolis. Com o fim do programa no ano passado, Carlos voltou para Cuba com a ideia de retornar ao Brasil. Segundo ele, viver na ilha caribenha ficou difícil demais. O médico juntou dinheiro e trouxe o companheiro, que é técnico em enfermagem. Como eles não têm autorização para exercer as profissões no país, agora dependem de biscates em variadas funções, atividades que pagam cerca de R$ 40 por um turno de trabalho. Nada é garantido e a renda ocasional só garante o pagamento do aluguel da casa em Galópolis.
— Tem uma coisa que preciso falar. Tem pessoas que contratam estrangeiros para fazer exploração. Acham que somos bobos. Ir trabalhar sem comida ou transporte e ganhar R$ 6 por hora. Te sobrecarregam porque tu é estrangeiro — lamenta o médico.
Sem emprego fixo, dependem do auxílio da comunidade. Moradores doaram móveis, utensílios e até dinheiro. Além disso, o casal ganha cesta básica da igreja católica e alimentos dos moradores. A oficialização do matrimônio, que teve como madrinhas a cabelereira Rose Lorandi Sirtoli, 58, e a dona de casa Noris Orlandi, 67, é um passo adiante para regularizar a situação no país. Sair da invisibilidade, porém, exige uma longa caminhada.
— No programa (Mais Médicos), dava para trazer um familiar por três meses, mas como em Cuba o casamento homoafetivo é proibido, não pude trazer ele, pois não era considerado da família. Estamos juntos há cinco anos. Agora somos uma família. Posso encaminhar o Luís para ter residência temporária com validade por dois anos e renovável por até nove anos — salienta Carlos.
A esperança de Carlos e outros médicos de Cuba está depositada na incorporação deles no programa Médicos pelo Brasil, que substituiu o Mais Médicos. O objetivo é que esses profissionais possam atuar no país sem a necessidade imediata do Revalida (processo de validação de diplomas de Medicina obtidos no Exterior, mas que está suspenso desde 2017). Os profissionais teriam quatro oportunidades para fazer o exame no período de até dois anos. O problema é que a definição vem sendo adiada. A última informação é de que será votada no Congresso na segunda-feira, dia 11.
— O caminho seria esse: trabalhar como médico, juntar dinheiro, fazer o Revalida, me estabelecer e depois meu marido fazer o mesmo — sonha o cubano.
"A população foi acolhedora"
Fiolangel de La Cruz Roble, 39 anos, acredita que sua trajetória é diferente de boa parte dos migrantes porque ingressou no Brasil com assistência do governo, o que mostra como ações do poder público são essenciais.
Natural da República Dominicana, ela chegou a Caxias do Sul em novembro de 2013 pelo extinto Mais Médicos. Permaneceu seis meses na unidade básica de saúde do Desvio Rizzo e foi transferida para a UBS do loteamento Campos da Serra, onde atuou por cinco anos. Em 2015, fez o Revalida e passou. Guarda o certificado junto ao diploma com muito zelo, pois sabe que o documento lhe garante como médica na cidade. Ela é casada e tem duas filhas.
— Tive bom atendimento dos órgãos públicos, a população foi acolhedora. Não vim como refugiada, então pode ser diferente com outros. Ah, mas se falo espanhol com minhas filhas na rua, todos olham como se fosse extraterrestre — diz Fiolangel.
Quando o Mais Médicos foi encerrado há um ano, a médica buscou trabalho na iniciativa privada. Hoje, atua como autônoma em três empresas diferentes e envia parte do salário para ajudar a família e pagar parte da faculdade de duas irmãs na República Dominicana. Ela ressente-se, porém, de não poder retornar ao serviço público.
— Por não ser brasileira ou naturalizada, não posso fazer concurso. É uma pena, pois fiquei muito tempo na área. A burocracia é muito grande para um estrangeiro. Consegui o CRM (inscrição no Conselho Regional de Medicina) no ano passado — conta.