A farra de mutuários do Minha Casa Minha Vida, que foram selecionados para receber imóveis subsidiados pelo governo federal, mas jamais colocaram os pés nas moradias, finalmente despertou reação mais abrangente das autoridades em Caxias do Sul.
Provocada pelo Ministério Público Federal (MPF), a Caixa Federal iniciou um processo sistematizado para reaver moradias num momento em que a maior leva de reassentamentos na história da cidade está perto de completar uma década. A estimativa é de que 380 unidades estão vazias, invadidas ou ocupadas por terceiros em loteamentos viabilizados com recursos federais e contrapartidas da prefeitura, reflexo das dificuldades da fiscalização e da má-fé de mutuários.
O trabalho ataca um problema que muita gente sabia. Nos últimos 10 anos, o Minha Casa Minha Vida Faixa 1 financiou 1.760 unidades em Caxias. Sob o ponto de vista social, a proposta é exemplar e auxiliou muita gente. Entretanto, com base em denúncias e no histórico de outros municípios, acredita-se que um a cada quatro ou cinco apartamentos foi parar na mão de outras pessoas sem relação com o programa, o que é proibido. As quatro centenas de apartamentos com a finalidade desvirtuada são avaliadas entre R$ 23 milhões e R$ 30 milhões, segundo corretores imobiliários.
Os casos não vêm à tona por acaso. A partir de 2020, o poder público pode perder a chance de reverter negociações proibidas e ocupações indevidas de dezenas de apartamentos construídos para beneficiar famílias de baixa renda. Os residenciais consistem em apartamentos de 49 metros quadrados, com dois quartos, sala, banheiro, cozinha e área de serviço. Como o governo subsidiou 90% do valor dos imóveis, o compromisso dos beneficiários era não vender, abandonar, ceder ou alugar o bem por um período de até 10 anos. Esse prazo começa a vencer no próximo ano, o que liberaria o caminho para a regularização de vendas ilegais realizadas ao longo do tempo. Agora, o Ministério Público Federal (MPF) e Caixa Federal correm contra o tempo para identificar os proprietários que receberam as chaves e assinaram os contratos na tentativa de esclarecer os motivos de os imóveis pelos estarem vazios ou em poder de terceiros.
As obras ganharam força no final em 2008, a partir do reassentamento de famílias do antigo Valão dos Braga, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do município, processo concluído em 2015. O grande salto ocorreu a partir do programa Minha Casa Minha Vida faixa 1, que atacou o déficit habitacional e viabilizou o projeto do loteamento Campos da Serra, com as primeiras unidades entregues em 2011, e o Rota Nova, inaugurado em 2017.
Os problemas são denunciados há tempos pelas comunidades, mas a solução esbarra na falta de provas. Além da venda ilegal ou invasão de unidades ociosas, situações que passam por cima das regras dos programas para populações de baixa renda, o cenário mostra a face cruel do tráfico de drogas, em que criminosos receberam os bens como pagamento de dívidas de usuários ou forçaram a entrada para abrir um ponto de venda em loteamentos populosos. Os loteamentos populares também abrigam famílias endividadas e com risco de perder o imóvel e até mesmo a possibilidade de falência de um conjunto habitacional por conta de dívidas.
Caixa intimou 25 mutuários
Entre 20 e 30% dos imóveis populares financiados pelo governo estão vazios ou ocupados por terceiros em Caxias do Sul, índice semelhante ao resto do país, na avaliação do procurador da República Fabiano de Moraes. A partir de dados colhidos pela Secretaria da Habitação, a Caixa Federal, financiadora dos programas, é provocada pelo Ministério Público Federal (MPF) a dar uma solução às denúncias. O objetivo é fazer com que esses apartamentos ociosos, invadidos ou vendidos ilegalmente sejam devolvidos e colocados novamente à disposição de outras famílias. Como não há perspectiva de novos empreendimentos de habitação popular na cidade, o redirecionamento aliviaria a fila da casa própria. No último levantamento de 2014, 9 mil pessoas estavam inscritas em programas habitacionais. O número real e atualizado será conhecido em novo levantamento do cadastro da prefeitura, com prazo de encerramento em 15 de outubro — a atualização até o momento contabilizou 5.296 famílias.
A tarefa de reaver os imóveis não é tão simples e, por esse motivo, o MPF optou por realizar uma espécie de teste no Condomínio Campos da Serra 4, segundo Fabiano de Moraes. No local, foram identificados 24 imóveis com irregularidades, correspondente a 20% das moradias. A Caixa intimou os donos a comparecer no banco para prestar esclarecimentos sobre o abandono, a invasão, o aluguel ou a venda. Um único imóvel já foi vendido duas vezes, segundo apurou a reportagem.
O resultado será usado como parâmetro para outros casos. Em relação ao Rota Nova, foi possível reaver três unidades que haviam sido colocadas à venda ilegalmente. Nesses casos específicos, a devolução ocorreu mais rapidamente porque o bem ainda não estava no nome do contemplados.
— Quando está comprovado que o imóvel foi vendido ou desocupado, há a ação para que seja repassado para a fila da casa própria. Esse trabalho começou no final de 2017, só que é específico de identificação, investigação. De ir e voltar, não é fácil comprovar — explica o procurador.
O primeiro edital da Caixa para localizar os "mutuários fantasmas" do Campos da Serra 4 saiu em julho e teve republicação em agosto. O mesmo documento cita um mutuário do loteamento Rota Nova. Confirmada a irregularidade, o caso fica caracterizado como descumprimento contratual ou desvio de finalidade do Minha Casa Minha Vida, o que antecipa o pagamento do financiamento em única parcela. A intenção é que os donos se apresentem para esclarecer ou assumir as consequências
"No caso dos beneficiários não regularizarem sua situação (comprovar de que estão residindo no imóvel) ou não realizarem o pagamento do valor total da dívida, o contrato será executado extrajudicialmente para que a propriedade dos imóveis seja consolidada ao Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e as unidades habitacionais sejam então disponibilizadas para novas famílias", reitera o banco em resposta à reportagem.
— O contemplado também pode ser enquadrado por estelionato, em caso de forjar documentos para se enquadrar nos requisitos. Há também a grande possibilidade de a pessoa não poder mais ser beneficiada nos programas habitacionais — alerta o procurador Fabiano de Moraes.
Conforme a Caixa, a regularização é formalizada por meio de uma declaração de moradia, na qual o beneficiário comprova a residência no imóvel. O dono pode antecipar a dívida e, neste caso, transferir o imóvel a terceiros.
A regra
O programa Minha Casa Minha Vida Faixa Faixa 1 beneficiou famílias com renda familiar de até R$ 1,6 mil em Caxias. Pelos contratos vigentes na época da contratação e assinados até 2016, o valor da prestação era de 5% da renda familiar, o que resultou numa prestação mensal máxima de R$ 80. O restante do valor da prestação foi subsidiado pelo Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). O prazo de financiamento é de 120 meses. Nesse período, o beneficiário não poderia vender, abandonar ou alugar o imóvel.
O que aconteceu
A grande maioria seguiu morando nos imóveis, mas uma significativa parcela descumpriu o contrato tão logo recebeu as chaves. Há aluguel, venda e abandono. No caso dos imóveis vazios, são corriqueiras as invasões.
Por que há imóveis vazios
Aumento de patrimônio: um dos fatores é a tentativa de uma família aumentar o patrimônio por meio de uma manobra no cadastramento em programas habitacionais. O casal já tinha imóvel próprio, mas o bem estava apenas no nome do marido ou outro familiar, por exemplo. Como a relação conjugal não estava oficializada no papel, a mulher ou o filho aparecia no cadastro como uma pessoa que se encaixava no perfil. Após receber as chaves, a família colocava alguns móveis dentro do apartamento para dar a aparência de ocupação, mas não residia no local.
Dificuldade para a devolução: pelo contrato, se o mutuário não quer mais o imóvel, precisa entregá-lo nas mesmas condições que recebeu. Acontece que não é barato pintar o apartamento e consertar estragos. Muitas pessoas mudaram de bairro ou cidade e permaneceram com a unidade em seu nome por não ter dinheiro para essa manutenção.
Famílias desestruturadas: a reportagem encontrou exemplo de um imóvel em que a dona é conhecida como usuária de crack. Ela residia alguns dias no apartamento e ficava meses sem aparecer até que o imóvel foi invadido de vez.
Invasões
É comum que famílias tomem conhecimento das unidades ociosas e optem por entrar sem autorização como forma de garantir uma moradia e escapar do aluguel. Essas famílias geralmente são as que mais pagam em dia o condomínio.
Outro motivo é a criminalidade, embora não tão abrangente. Os loteamentos populares de Caxias do Sul foram erguidos em áreas afastadas do centro. A estrutura arquitetônica, com várias torres e apartamentos, atrai foragidos da Justiça e de traficantes. Há casos de mutuários em dívida com o tráfico, que se veem obrigados a abandonar o imóvel e entregá-lo para traficantes.
A comunidade reclama que a denúncia nem sempre é o bastante para conter as invasões no momento em que elas ocorre. Isso acontece porque as autoridades interpretam, à distância, que o maior interessado é o dono do apartamento. Ou seja, se o dono não denuncia é porque não fica claro o problema. A fiscalização muitas vezes é realizada a cada 30 ou 40 dias.
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