Uma pesquisa inédita em Caxias do Sul, desenvolvida por psicanalistas voluntários, tenta identificar o sofrimento psíquico em crianças de zero a três anos e realizar intervenções para prevenir a evolução para psicopatologias graves. O projeto-piloto vem sendo desenvolvido em três escolas de educação infantil desde agosto do ano passado e terá continuidade até julho, com expectativa de ampliar o estudo para outras instituições do segmento.
O trabalho também servirá para acompanhar as crianças no seu processo de desenvolvimento psíquico e capacitar os cuidadores. Considerando que os profissionais de educação infantil estão ao lado dos familiares nos cuidados e na educação das crianças pequenas, entende-se que eles precisam estar preparados para acompanhar o desenvolvimento psíquico dos pequenos sob seus cuidados e contribuir para a promoção da saúde mental.
O trabalho pode ser entendido da seguinte forma: os integrantes do Serviço de Atendimento Clínico da Escola de Estudos Psicanalíticos (EEP) vão até as escolas do projeto e observam as crianças. Os profissionais utilizam recursos clínicos para avaliar o desenvolvimento das crianças, o que inclui a parte psíquica, a linguagem e a motricidade, entre outros. Busca-se olhar sinais que estejam ausentes no desenvolvimento, como por exemplo, um bebê apático que a partir dos cinco meses evita olhar na interação com as pessoas, não responde quando é chamado pela mãe ou se mostra desinteressado pelos estímulos.
Outra situação seria um bebê com atraso na parte motora, que já deveria estar quase caminhando, mas sequer começou a engatinhar ou com atrasos significativos na linguagem. No entendimento dos pesquisadores, a prevenção, nessa perspectiva, permite o fortalecimento do laço entre a criança e os pais ou cuidadores, desencadeia trocas prazerosas que ajudam o bebê ou a criança a se interessar pelo outro, pelo ambiente, pelo brincar simbólico (do faz de conta), promovendo uma procura do bebê na relação com outro, fazendo-se olhar e escutar.
Com a ação, espera-se que seja possível prevenir que os atrasos se tornem irreversíveis e, assim, diminuir significativamente a incidência de transtornos psíquicos tanto na infância como na idade adulta.
"O trabalho tem que ser preventivo"
A pesquisa surgiu de inquietações de psicanalistas da primeira infância e do desejo deles de trabalhar com a intervenção precoce, corrente defendida especialmente no Brasil e na França. O entendimento é de que o desenvolvimento integral de uma criança exige um olhar conjunto para as condições físicas e psíquicas, pois são questões entrelaçadas. A prevenção, por sua vez, reduz a demanda futura por atendimentos de saúde.
Em Caxias, os profissionais acompanham o desenvolvimento de 25 crianças nas escolas infantis Dolaimes Stédile Angeli, no bairro Centenário, Frei Ambrósio, no Esplanada e Tia Gema, no São Ciro. O projeto é executado em parceria com a Secretaria Municipal da Educação (Smed) e as entidades mantenedoras Centro Filantrópico de Assistência Social Charles L. S. Lundgren, Associação de Educação Integral Educaxias e Associação Cultural Jardelino Ramos AEJAR.
— A nossa preocupação, dentro desse contexto, é de pensar que o trabalho hoje em dia precisa ser preventivo. A nossa ideia está sempre voltada para o olhar da saúde, não da patologia. Existem indicadores que essa criança pode estar em sofrimento psíquico. Então, quanto antes detectarmos esses sinais no primeiro e segundo ano e quanto antes pudermos intervir, mais condições vamos dar para que essa criança volte a ter um desenvolvimento dentro do esperado — explica a coordenadora do projeto, Margareth Kuhn Martta.
SAIBA MAIS
O que é sofrimento psíquico?
É quando a criança dá sinais de que não está bem e isso pode ser determinado por questões diversas. Todo desenvolvimento se faz da relação dela com as pessoas que a cercam, como os pais e cuidadores e o ambiente em que vivem. Se uma criança apresenta sinal de que não está muito interessada no vínculo com os pais e cuidadores, se aparenta passividade ou chora muito, se não interage com o ambiente, ela será observada no projeto-piloto e a equipe tentará entender o que está acontecendo. O resultado pode ir para muitas direções, afinal são muitas as causas que podem levar a um atraso do desenvolvimento. Pode ser uma criança que está fazendo algum luto (separações precoces, como situações de abandono, doenças) ou mesmo lutos não feitos pelos pais, como exemplo histórias de abortos, perda de um filho anterior ou mesmo de algum familiar. Questões orgânicas também podem estar influenciando o psíquico da criança: déficits sensoriais ainda não identificados (por exemplo, surdez); dificuldades em questões referentes ao sono ou a alimentação (como bebês que são muito seletivos na alimentação); criança que sente dor ainda não identificada.
Entre os integrantes da EPP, algumas especificidades do trabalho clínico têm causado preocupação no atendimento de crianças pequenas. Há um aumento crescente de crianças com diagnóstico de transtorno do espectro autista. Nas consultas, muitas vezes a mesma história se repete: pais que há tempos percebiam que algo não estava bem com o seu bebê, mas escutavam repetidamente que deveriam esperar. De repente, recebem um diagnóstico fechado e definitivo.
Por que o trabalho ocorre na rede pública?
Há alguns anos, psicanalistas brasileiros e franceses vêm se debruçando sobre a intersecção entre a psicanálise e a educação. São evidentes os efeitos subjetivantes que o ambiente escolar exerce sobre a criança, às vezes suprindo falhas, tais como a entrada de um terceiro na relação mãe-filho, onde muitas vezes é a escola que ocupa esse lugar. A equipe identificou casos de crianças enfrentando percalços no processo de constituição psíquica, cujo investimento feito pelo educador tem uma função maternante, preenchendo uma lacuna quando há funções parentais fragilizadas. Na França, o trabalho da pesquisa do Programme de Recherche sur l'Autisme (PreAut) teve como principal objetivo validar o protocolo para detecção de risco para autismo na saúde pública e, posteriormente, trabalhar na capacitação de pediatras para que pudessem fazer a leitura do desenvolvimento psíquico do bebê e intervir (através de um protocolo de reanimação psíquica). No Brasil, o trabalho é voltado, principalmente, para a capacitação de profissionais da saúde e da educação.?
No contexto, a criança é acompanhada no sistema público de saúde, não apenas pelo pediatra, mas por equipes multiprofissionais no Programa Saúde da Família. Além disso, muitos bebês vão para a escola de educação infantil ainda no primeiro de vida. A EPP observou ainda que a maioria dos casos que chegam aos consultórios são encaminhados pela escola e não pelo pediatra. Por isso, chegou-se a um entendimento de que a escola pública seria uma importante porta de entrada para o trabalho de pesquisa e intervenção.
O que será feito com os resultados?
Os resultados das avaliações e intervenções realizadas na pesquisa são mensalmente discutidos no Núcleo de Estudos sobre Intervenções Psicanalíticas com crianças em risco psíquico, do qual participam profissionais de diversas áreas: psicologia, neurologia, pediatria, fonoaudiologia, psicopedagogia, fisioterapia e psicomotricidade. A partir da clínica de cada um, são estudados e pesquisados os aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento. Foi a partir deste grupo que surgiu a ideia de ampliar o trabalho para as escolas de educação infantil.
Por meio da pesquisa-intervenção, há a possibilidade de pensar o caso a partir da leitura e do acompanhamento do movimento de constituição psíquica na primeira infância, transmitindo aos pais e aos professores uma sustentação para o trabalho do desenrolar dessa constituição da qual lhes compete também participar. É dessa forma que a psicanálise entende a prevenção das psicopatologias graves na infância: criando condições para que o sujeito se constitua. Considerando que os profissionais de educação infantil estão ao lado dos familiares nos cuidados e na educação das crianças pequenas, assumindo também uma função constitutiva, entende-se que esses profissionais precisam estar preparados para acompanhar o desenvolvimento psíquico das crianças sob seus cuidados, de modo a contribuir para a promoção, desde a primeira infância, da saúde mental.
Quantos profissionais estão envolvidos e quais as especializações?
No primeiro semestre da pesquisa, cinco psicanalistas da EEP, com formação em psicologia clínica e psicopedagogia, frequentaram semanalmente as três escolas para acompanhar, avaliar e intervir com crianças, educadores e pais: Ariela Siqueira Dal Piaz, Elenice Cazanatto, Giselle Dalsochio Montemezzo, Margareth Kuhn Martta e Sandra Maria Mazzochi. Em 2019, passam a integrar o projeto Ana Bonone e Macuri Peteffi. Maria do Carmo Mattana, neurologista pediátrica, se juntou ao grupo recentemente como colaboradora.