A biografia da maioria dos adolescentes assassinados em Caxias do Sul tem em comum a vivência em comunidades surgidas às margens da intervenção do Estado. Embora pareça óbvia, é somente agora que essa relação será oficialmente reconhecida como um dos motivos para priorizar a regularização fundiária de loteamentos e bairros pobres da cidade. A provocação partiu do Ministério Público (MP) e embasará projetos de reassentamento ou de melhorias de infraestrutura em andamento ou urbanizações futuras.
Os números comprovam a relação da violência com o ambiente em que os jovens estão inseridos. De 53 adolescentes mortos desde 2010 na cidade, 95% deles tinham como endereço de moradia núcleos habitacionais criados sem planejamento urbanístico, assentamentos precários em áreas de risco e até mesmo loteamentos populares abertos pela prefeitura no passado, mas sem oferta de educação e lazer. Na ausência do Estado, abriu-se caminho para o acolhimento paralelo do tráfico de drogas e o aliciamento para outros tipos de crime. Coincidentemente, são nessas regiões onde se registra grande índice de evasão escolar.
— Fizemos um corte histórico da morte de adolescentes e foram listados os locais onde ocorreram os crimes. Ficou evidente que quase tudo ocorreu em área irregular. São locais com becos, casebres, iluminação precária — salienta o promotor de Justiça Ádrio Gelatti, especialista em regularização fundiária.
A matança da juventude vem sendo registrada em comunidades com esse perfil desde os anos 1960 na cidade, mas pouco se fez para intervir de fato na situação. As ações geralmente envolveram policiamento e projetos sociais sem efeitos impactantes no cotidiano e diferentes gerações seguiram morando em loteamentos e bairros com infraestrutura mínima ou inexistente, condições que favorecem a formação de uma cultura de violência.
Curiosamente, a intervenção urbanística não vinha sendo incluída como uma das soluções contra o problema. A nova concepção pode corrigir omissões históricas, pois entende-se que projetos macros de pavimentação, de remoção de moradias precárias, de qualificação da iluminação pública e de esgotamento sanitário, entre outros, podem mudar o aspecto de um núcleo, valorizar a autoestima dos moradores e desmobilizar o crime.
— Diminuir efetivamente a violência requer outras políticas. Mas se não trabalhar a regularização, fica difícil. Isso vem com a urbanização, com a prestação de serviços públicos, com o Estado indo lá naquela comunidade para levar saúde e educação. No planejamento da política pública não tinha isso, é uma novidade. Rende um novo olhar — reflete Gelatti.
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ENTENDA
:: A regularização fundiária envolve um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais em assentamentos erguidos sem planejamento. Em Caxias do Sul, há 421 parcelamentos irregulares, sendo que 108 casos são de interesse social (de famílias de baixa renda).
:: Um intervenção de grande porte exige muito dinheiro. Primeiro, o município realiza um diagnóstico da área por meio de levantamento topográfico e viário. Após, realiza uma pesquisa da situação socioeconômica das famílias. A partir disso, é estabelecido um trabalho multissetorial. Aponta-se, por exemplo, se há necessidade de remoção de moradias, qual a infraestrutura implantada e o que falta. A partir das intervenções mapeadas, é feito cronograma de obras e serviços.
:: O projeto Rota Nova, por exemplo, que removeu 420 famílias que viviam na beira da Rota do Sol, consumiu R$ 50 milhões. Por isso, o município trabalha por áreas prioritárias porque não teria recursos para atender as dezenas de núcleos irregulares.
:: Dentro da política de regularização fundiária, quanto mais uma comunidade pontuar em diversos aspectos, mais chances ela terá de receber investimentos antes das demais. Até então, eram avaliados 11 itens com pontuação diferente. Exemplo: uma comunidade que está sob uma rede de alta tensão, terá mais pontos do que um núcleo que não se enquadra nesta categoria e assim por diante.
:: Atualmente, 34 comunidades em situação precária foram separadas em seis grupos diferentes. No momento, o grupo do Cânyon, Monte Carmelo, Portinari, Centenário II, Jardelino Ramos e Vitória está no topo das prioridades. Na sequência, aparece o grupo que inclui a Cooperativa Esperança do Vale (Coesp), no bairro Planalto, o Euzébio Beltrão de Queiróz, a Cooperativa Habitacional Asa do Aeroporto (Copasa), o Diamantino, o Vale do Planalto e o Marumbi.
:: A partir de agora, a violência será considerada outro item de pontuação. Ou seja, se determinado núcleo tem mais assassinatos de jovens e adultos do que outro, ganhará mais pontos e subirá no ranking das prioridades, desde que outros itens estejam contemplados. A forma como será realizada a pontuação dos homicídios não está definida.
:: A novidade não quer dizer que outros loteamentos irregulares não serão atendidos. O município poderá fazer intervenções em núcleos com processos mais avançados ou que não dependam de tanto investimento.
Euzébio e Zona Norte foram os que mais perderam jovens
A inclusão da violência como parâmetro para regularização fundiária depende de um estudo. O levantamento que destacou a relação do ambiente e a mortalidade de adolescentes abrange o período de 2010 e 2016 e foi realizado com o propósito de fomentar ações preventivas em Caxias do Sul na gestão anterior da prefeitura. O plano envolvia a polícia, a Secretaria da Educação, o Conselho Tutelar e a Secretaria da Segurança, entre outros setores.
Ao avaliar o endereço das moradias de 42 vítimas com idades entre 10 e 18 anos, percebeu-se que a maioria vivia em loteamentos irregulares ou em bairros que surgiram de forma desordenada ou só conquistaram a regularização muito tempo depois. A esse número do mapa, a reportagem incluiu os casos de 2017 e 2018 e chegou aos 53 assassinatos de adolescentes em Caxias e suas respectivas moradias. Com seis mortes desde 2010, o Euzébio Beltrão de Queiróz é o que mais perdeu adolescentes, seguido por bairros da Zona Norte.
A intervenção mais forte no Euzébio ocorreu com a revitalização da Rua Cristóforo Randon e com a abertura de um centro cultural em 2016. Contudo, a parte interna do bairro, formada por casas coladas uma na outra, escadarias e becos, não mudou e serve como uma espécie de muralha para que criminosos se infiltrem entre as famílias sem relação com a violência.
— Chegamos a conclusão de que o fato de morar num aglomerado de casas, sem estrutura, o jovem acaba evadindo da escola, se envolve com o tráfico — aponta Marcos Aurélio Haimann, responsável pela confecção do mapa e especialista em geoprocessamento da Secretaria Municipal da Saúde.
Para estabelecer como a violência afeta os núcleos de subabitação, a ideia é incluir a morte de adultos no estudo.
— Temos que testar na prática para ver se reduz a violência. Pode ser que tire a violência dali e migre para outro lugar — pondera o promotor Ádrio Gelatti.
A secretária municipal do Urbanismo, Mirângela Rossi, vê com bons olhos o tratamento dado à violência.
— Onde o Estado não está, tem outros poderes que estão. Entendo que a regularização é importante para tudo. Se a pessoa tem a posse e a propriedade do imóvel e a infraestrutura do município é levada em todas as condições, é mais difícil que outros problemas influenciem — diz a secretária.
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