Fosse possível determinar o início da violência que nos cerca, a gênese que conduziu desavenças e vinganças mortais, roubos e tantos crimes que hoje assolam Caxias do Sul, haveria respingos nos quartos e no sótão de uma casa que já não existe mais, cenário do primeiro grande crime da história da cidade.
Num domingo, há 141 anos, uma saraivada de balas perfurou os tabuões do assoalho e as paredes de tabique da casa de negócios e hospedaria do imigrante alemão Nicolao Frederes, uma das poucas benfeitorias na então Colônia Caxias.
Anna Flissic, 15 anos, Rosa Scharnitzky, 18, duas imigrantes do antigo reino da Prússia, e o italiano Giovanni Modena, 45, tombaram ensanguentados entre o amontoado de gente escondida nos aposentos. No salão principal, soldados do Exército imperial de Dom Pedro II empunhavam as espingardas de onde saíram os tiros. Supostamente, os homens fardados ignoravam que haviam atirado em pessoas que pouco antes se divertiam num baile. O triplo assassinato que manchou o início da colonização na Serra na noite de 28 de outubro de 1877 é uma pista sobre como a violência e a criminalidade se estruturaram ao longo de quase um século e meio.
Tensão
A vida não era fácil nos primórdios da colonização em Caxias do Sul. Desde a chegada dos primeiros colonos em 1876, a pobreza era um dos desafios. A colônia já tinha centenas de moradores várias nacionalidades (a maioria era de italianos) na sede principal e em outras localidades. A relação de pessoas com ideologias e origens diferentes era complicada, o governo imperial não cumpria o que havia prometido, o que só ajudava a aumentar a tensão na comunidade, segundo relatos de historiadores.
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Foi neste contexto que aconteceram as mortes de Anna, Rosa e Giovanni, caso que ajudou a desencadear uma preocupação em relação à segurança pública local, segundo consta em documentos posteriores da então Diretoria das Colônias. Antes do triplo assassinato no hotel, não havia precedentes para esse tipo de violência na colônia. Foram três vidas perdidas de uma só vez na terra da cocanha, o paraíso imaginário dos imigrantes que haviam deixado a miséria na Europa. A partir daí, os ânimos nunca mais se apaziguaram.
O caso do hotel de Nicolao Frederes constrangeu o pernambucano Francisco de Faria Lemos, presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. A colonização era um projeto que deveria ser exemplar e os líderes europeus estavam, de certa forma, interessados na jornada dos compatriotas em terras tropicais. Logo após o crime, Faria Lemos esteve na colônia e determinou a abertura de uma investigação. Um delegado de São Sebastião do Caí — cidade a qual pertencia a Caxias — recebeu a tarefa. Conforme a historiadora Terciane Luchese, o policial tinha ordens para prender os envolvidos e levaria 10 praças para conduzir o inquérito na cidade. Contudo, houve uma reviravolta na decisão da província diante do temor de que a presença dos militares pudesse gerar revolta popular e o grupo foi removido da cidade. Era a primeira troca oficial de uma força de segurança na cidade por questões que extrapolavam a burocracia.
Faria Lemos, que entregaria o cargo cinco meses após as mortes dos imigrantes, frisou a ação desproporcional do destacamento militar no hotel da colônia num relatório de 1878, documento arquivado na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro (disponível na internet). As impressões do presidente, porém, tentavam amenizar a ação desastrosa, conforme ele deixou claro no trecho abaixo:
"Na minha viagem às colônias fui visitar o teatro de tão sanguinolenta cena, e com os meus próprios olhos verifiquei os estragos causados pelos projetis nas paredes, prateleiras e outros acessórios da pequena casa. Pelo que me parece, há mais que lamentar uma imprudência do que um crime no fato que descrevo. Todos os tiros foram disparados de baixo para cima, como indicam a altura dos pontos tocados pelas balas e o percurso destas através das paredes. Provavelmente teve-se em vista intimidar os colonos, por meio de inútil e estrondosa manifestação de força; mas os resultados excederam a expectativa."
Absolvição
Na semana passada, a reportagem localizou o processo judicial de 434 páginas no Arquivo Público do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Embora o Ministério Público e a polícia tenham concluído que houve ação exagerada com base no depoimento de testemunhas, os jurados optaram, dois anos mais tarde, pela absolvição dos militares por aparentemente não haver provas de que eles atiraram com a intenção de matar.
Anna, Rosa e Giovanni, mesmo inocentes conforme apontou Farias Lemos, não tiveram os nomes tipografados no documento do presidente da província. Sem punição dos autores, a história oficial tratou de deixar os imigrantes que não falavam português no anonimato.
Analisadas hoje, essas vidas perdidas retratariam talvez a atitude repressora do Estado imperial no trato com cidadãos de outra cultura, que ainda se adaptavam ao recém desbravado Campo dos Bugres. Sinalizaria, quem sabe, que armas sempre estiveram muito mais engatilhadas para confrontos do que para proteção. Ou que a intolerância continua sendo a principal saída para tudo que é discordante e a impunidade vigora há muito tempo.
Mas há outra suposição: assassinatos tendem a ser desconsiderados desde sempre como um problema de segurança. São vistos mais como uma chaga social, portanto, soam como aceitáveis e logo são esquecidos.
— Os homicídios têm uma justificativa para acontecer, na visão da maioria das pessoas. Para a sociedade, matar alguém acaba sendo como um processo isolado diferentemente do crime patrimonial, que é visto como algo de vagabundo e gera uma indignação diferente. Mas não podemos comparar uma vida perdida com um roubo, jamais — pondera a criminóloga Angie Finkler.
Muito do que ocorreu lá no início da colonização de Caxias, muito do que avançou nas décadas posteriores poderia explicar a cidade de hoje. Há uma certeza: a violência não tem passado ou capítulo na história da formação da cidade. A coletividade grita por paz, mas não tem memória para usar como aprendizado. Choram as famílias e os dramas prosseguem dia após dia.
O CRIME QUE MANCHOU O INÍCIO DA COLONIZAÇÃO EM CAXIAS
:: O primeiro grande crime da história de Caxias do Sul aconteceu na noite de 28 de outubro de 1877, um domingo, e envolveu um conflito entre autoridades e colonos na Sede Dante (área central de Caxias). Naquela época, a casa de negócios e hospedaria de Nicolao Frederes era um dos pontos de diversão e encontro na colônia de Caxias.
:: Um pequeno baile atraiu colonos e também o capitão Pedro Abrelino de Oliveira, o cadete e os praças de um batalhão de infantaria. Depoimentos indicavam que brasileiros e imigrantes não se entendiam devido às barreiras dos idiomas e se mantinham afastados, conforme o processo no qual o Pioneiro teve acesso.
:: O ambiente estava tenso. O capitão viu um italiano dançando armado com um facão. Por precaução, o colono foi desarmado. Um cadete tentou dançar com uma imigrante, mas ela declinou alegando que havia sido proibida por um familiar de manter contato com soldados.
:: O capitão saiu do hotel, mas o cadete e alguns praças permaneceram no baile. Alguns colonos teriam censurado o ato de desarmamento e houve confusão. No conflito, um cadete ficou ferido, pulou por uma janela e pediu auxílio ao seu superior.
:: Após a briga, o capitão e praças armados voltaram ao hotel. Os ânimos se exaltaram ainda mais. Pessoas se esconderam nos quartos e no sótão, outras fugiram por um quintal.
:: Os militares fizeram disparos na hospedaria. Anna Flissic, 15, e Rosa Scharnitzky, 18, levaram um tiro no peito. Giovanni Modena, 45, dormia num quarto no sótão e desceu para ver a confusão, quando foi baleado.
:: Anna e Giovanni morreram dentro da hospedaria. Devido aos ferimentos, Rosa morreria 15 dias depois.
:: Nove militares foram processados. O tribunal do júri absolveu todos os réus num julgamento realizado em São Sebastião do Caí, em 1879.