Quando imigrantes que povoaram Caxias do Sul nos primórdios da colonização se rebelavam com o tratamento dado pelo governo brasileiro, logo eram taxados de criminosos pelos adversários numa tentativa de enfraquecimento. Foi assim que surgiu um emblemático personagem e ao mesmo tempo vítima de um dos primeiros crimes insolúveis da história de Caxias do Sul: Affonso Amabile. O calabrês sempre teve má fama e foi assassinado em 1894, caso jamais investigado.
Na Itália, antes de migrar para o Brasil, havia sido preso por roubar queijos e supostamente liderava um bando de assaltantes e assassinos. Na Colônia Caxias, foi detido por ter invadido um almoxarifado exigindo que parassem de distribuir comida estragada aos imigrantes. Ao bater de frente com os diretores da colônia, virou desafeto e teve a imagem deturpada pelos representantes do governo.
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Para o escritor José Clemente Pozenato, que usou Amabile como um dos personagens do livro A Cocanha, é natural a criação de lendas negativas em torno de pessoas que desafiam poderosos. Na Itália, Amabile era um anarquista. No Brasil, tornou-se uma espécie de líder comunitário. Aqui, atuou como enfermeiro e teria denunciado o descaso quando uma epidemia da varíola atingiu a região.
— Hoje, Amabile poderia ser visto como um ativista. Foi retratado pelos inimigos como um bandoleiro, um criminoso, o que ele não era. Ele era pela mudança da ordem social — teoriza Pozenato.
Amabile virou líder do braço armado de rebeldes. Isso pode ser verificado com a queda do império de Dom Pedro II e a proclamação da República. Segundo Loraine Slomp Giron, houve enfrentamento entre os republicanos e os antigos monarquistas. A governança do Estado mudou várias vezes e a instabilidade chegou a Caxias, já um vila autônoma.
Em 1891, cerca de 300 colonos coordenados dirigiram-se até o escritório da Comissão de Terras, encarregada da demarcação e medição de lotes, para exigir aumento no pagamento do subsídio que recebiam. Houve negativa do ajudante. Revoltado, o grupo apedrejou o prédio e atacou policiais. Entre os líderes dos rebeldes, estava Amabile e outro italiano, Cesare Porta. Em seguida, os revoltosos depuseram o governo local, chefiado por Rodolfo Félix Laner. A junta só reassumiria o poder três semanas mais tarde. Contudo, seria deposta novamente em fevereiro de 1892 pelo mesmos rebeldes, que se mantiveram 10 dias no comando da cidade e só foram removidos com uso de uma força estadual. Esse resgate histórico serve para contextualizar como Amabile se tornou indesejado.
Na revolução federalista, ele esteve ao lado dos maragatos. Com a derrota na batalha de Caxias em 1894, houve uma dispersão dos grupos pela região. Porta teria sido morto num confronto com policiais, segundo anotou João Spadari Adami. Mais tarde, alguém não identificado executou Amabile a tiros. O sepultamento teria sido conduzido pelo italiano Antonio Pizzolato, integrante da Guarda Municipal. Conforme relatos de Adami, o corpo de Amabile foi enterrado na entrada de Galópolis — a localização da sepultura perdeu-se com o tempo. Questionado pela Itália sobre o sumiço de dois compatriotas, o governo limitou-se a dizer que Porta e Amabile eram cidadãos brasileiros.
— É difícil entender o que houve com ele, quando acontece a eliminação, somem as provas — ressalta Pozenato.
O então estudante de História, Marcos Toffoli, esteve em Caxias do Sul há mais de 10 anos para coletar informações sobre Affonso Amabile para umo trabalho de conclusão de curso (TCC). Na época, ele falou com um antigo morador que havia afirmado que Amabile teria sido enterrado debaixo de um laranjal. A plantação não existe mais.
— Minha intenção era mostrar que locais históricos também foram palco de barbáries. Quando fui a Galópolis, falei com um senhor já falecido. Havia uma informação de o corpo de Amabile foi exumado três ou quatro anos depois, possivelmente em 1898. Sobre isso, nunca descobri nenhum dado. Gostaria de saber como foi isso, para onde foram levados os restos mortais? — questiona-se Toffoli.