Pouco antes das 19h do sábado chuvoso, um pequeno grupo de pessoas já aguardava junto à porta da Igreja São Leonardo Murialdo, no centro de Caxias do Sul, para o último pernoite do projeto Hospedagem Solidária. No lado de dentro, os voluntários terminavam de arrumar a comida que seria servida no jantar: arroz, feijão, carne, massa. Em outro ponto do salão paroquial, toalhas, sabonetes e creme dental para quem quisesse fazer a higiene antes de dormir. Dispostos lado a lado, colchões com lençóis, travesseiros e cobertores estavam prontos para receber os hóspedes para a última noite de sono no alojamento temporário. Aos poucos, os hóspedes foram chegando. Passaram pela revista da Guarda Municipal, como de praxe. Trocaram sapatos e tênis por chinelos e aguardaram até serem convidados a ocupar um lugar à mesa. Ouviram música. Cantaram. Comeram. Conversaram. E, adormeceram.
A rotina foi a mesma nas 83 noites desde que a iniciativa teve início, em 11 de junho. Mas o sentimento já era de despedida. As atividades se encerraram ontem, com uma cerimônia na igreja e confraternização entre usuários e voluntários. Contudo, já no sábado, todos sabiam que dali em diante não teriam mais a acolhida diária e o abrigo noturno que os protegeria do frio e da chuva.
A ação foi projetada para atender aos moradores de rua nos meses de inverno, quando eles sentem mais os efeitos do clima. A média diária de atendimentos foi de 45, mas chegou ao máximo de 61. As refeições eram fornecidas pelos restaurantes Sica e Del Grappa. Outros produtos vinham do Banco de Alimentos.
A igreja, que cedeu o espaço, precisa do salão para atender as demandas da comunidade, mas os próprios organizadores também lamentaram o fim do projeto. Osmar Gomes Mota, 53 anos, disse que sem o lugar, vai voltar a dormir na rua. Ele veio da Bahia, trabalhou por um tempo em construções, mas perdeu o emprego e foi parar na rua há cerca de quatro meses.
— É uma pena não ter mais para frente. Se pudesse continuar era bom.
Para alguns, uma oportunidade de recomeçar
Não há um dado oficial, mas muitas pessoas assistidas pelo projeto são como Osmar: vieram de outra cidade. Igor Roberto Vergara da Silveira, 31 anos, é um deles. Ele migrou de Pelotas para resolver uma questão familiar em Caxias do Sul. Se viu sem dinheiro e sem lugar para ficar. Passou algumas noites na rua e encontrou, entre os moradores, a indicação do Hospedagem Solidária. No local, além da acolhida, obteve indicação para emprego e abraçou a oportunidade. Alugou uma casa e continuou frequentando o projeto apenas para se alimentar. No último sábado, foi ele quem alcançou os chinelos para os que chegavam.
— Faz muita diferença, chegar aqui, ser atendido. Aqui é um lugar para carregar a bateria, para sair alimentado no outro dia, com energia, até a hora de surgir uma oportunidade para poder agarrar com tudo — considera Igor.
Oportunidades que podem mudar as vidas de muitos outros homens que frequentavam o projeto, segundo uma das coordenadoras, Maria Teresinha Mandelli Grasselli, 60 anos, chamada de "mãe Têre".
A média de idade dos assistidos é de 42 anos. Entre eles, há pedreiros, carpinteiros e padeiros, alguns catadores de lixo, moradores de rua mesmo e até pessoas que estavam com familiares hospitalizados e não tinham onde ficar. Têre conhece todos pelo nome.
– O que acontece aqui é pura doação. Todos vão sentir falta. Mas, principalmente, do afeto, da atenção, do respeito que tinham aqui – diz a coordenadora.
Para os voluntários, lição de vida
Ao todo, 375 pessoas, segundo a organização, candidataram-se como voluntários no projeto. Eles foram organizados em grupos e atuavam em dias alternados. Participaram as comunidades das paróquias Santa Catarina, Renovação Carismática, Catedral, São Pelegrino, Nossa Senhora de Lourdes, além de outras pessoas que aderiram à iniciativa.
Foi com lágrimas nos olhos que um dos coordenadores, o empresário Juliano Gambin, relatou a experiência:
— Nunca havia participado de um projeto voluntário. Foi fantástico, renovador. Tinha uma visão totalmente distorcida do que é (ser morador de rua). Depois que comecei a participar aqui, passei a enxergar com outros olhos as pessoas. Eles estão bastante tristes e nós também — disse, referindo-se ao fim das atividades.
Conhecida entre os usuários do serviço como a "irmã do chá", por preparar a bebida aos resfriados do grupo, Edith Basso, 77, da Congregação Imaculado Coração de Maria, não escondia a preocupação com o futuro dos atendidos:
— Passamos calor humano e amor e criamos vínculos com eles.
Ideia é montar hospedagem permanente
Diante da aceitabilidade por parte dos usuários, da adesão de voluntários, de empresas que aceitaram a parceria e da proporção que o projeto ganhou, os coordenadores estão imbuídos em um novo desafio: conseguir local e estrutura para tornar o projeto Hospedagem Solidária permanente. Para isso, os organizadores pretendem visitar cidades que tenham propostas semelhantes, as quais possam servir de modelo.
Por enquanto, segundo o padre Eleandro Teles, da Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, duas ações seguirão sendo desenvolvidas. Uma é a entrega de sopão e agasalhos, realizada semanalmente, há dois anos, pela Pastoral das Pessoas em Situação de Rua. A outra deve começar nesta semana, para manter o vínculo com o grupo assistido pelo Hospedagem Solidária. Haverá distribuição de jantar, rodas de conversas e encaminhamento, quando necessário, para os serviços da rede pública de assistência. Ambas ocorrerão nas noites de quinta-feira. Este último, ainda não tem local definido, mas, conforme o padre, deve ser na Paróquia São Pelegrino ou na de Lourdes.
— Estamos planejando uma ampliação dessa ação, para que seja permanente. Porém, neste momento, ainda não temos estrutura e condições para iniciar em outro local mais apropriado. Planejamos isso para o ano que vem — aponta Eleandro.