A restrição do atendimento pediátrico no Pronto-Atendimento 24 Horas em Caxias do Sul ao sábados e domingos deve se repetir neste fim de semana. Será a quinta vez que a situação se repete. A orientação, divulgada a cada sexta-feira, é que as famílias procurem diretamente a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Zona Norte. Uma linha de ônibus foi implantada para tentar facilitar a logística de transporte entre os dois locais. Justamente quando o frio é responsável por lotar as salas de emergência em todo o Estado, a cidade chegou a um preocupante déficit no número de pediatras disponíveis: no Postão, são seis profissionais a menos (redução de 26% no quadro), em decorrência de aposentadorias, licenças ou exonerações. Com 70 horas de consultas semanais na pediatria a menos, fica praticamente impossível fechar as escalas com dois profissionais por turno diariamente. O problema, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, é que não há médicos desta especialidade em lista de espera nem profissionais em cadastro de reserva que aceitem a oferta para trabalhar excepcionalmente nesses fins de semana.
Leia também:
Vereadores questionam falta de pediatras no Postão
Não há atendimento pediátrico pelo quarto final de semana seguido no Postão de Caxias
— Nós procuramos pessoas para poder firmar contratos emergenciais e com RPA (recibo de pagamento autônomo), continuamos ligando para o setor de recursos humanos e ele está com uma lista de nomes tentando ver contratos emergenciais. Mas, até agora, não conseguimos nada. Possivelmente, repetiremos a situação neste fim de semana — adianta a secretária de Saúde, Deysi Piovesan.
Deysi garante que crianças que chegam em estado mais grave recebem os primeiros socorros no próprio Postão, e só depois são encaminhadas à UPA. Esses teriam sido menos de 10 casos no último fim de semana. O que chama a atenção, no entanto, é que o número de atendimentos pediátricos nesse período, na UPA, não demonstra que concentrava os atendimentos das duas unidades. Exemplo: foram 158 consultas pediátricas na UPA entre a noite de sábado e a manhã da segunda. A média do Postão, em maio de 2017, era de 153 consultas pediátricos só no domingo. A secretária Deysi não acredita, porém, que as famílias estejam deixando de procurar o serviço aos fins de semana.
— Como retorno, nós temos informação de que todas as crianças são atendidas na UPA, e que a procura no Postão vem diminuindo. Não houve tumulto, não houve uma situação caótica. Hoje temos até a facilidade do ônibus _ destaca.
Com cenário de difícil resolução nos próximos dias, a expectativa é que novos pediatras atendam ao chamado do concurso público realizado neste ano, cujos nomes dos aprovados ainda não foram divulgados. Não há previsão para iniciar os chamamentos.
Situação caminha para terceirização, criticam sindicalista e médica
A restrição no atendimento de pediatras no Postão seria uma estratégia da prefeitura para sucatear o serviço e reforçar a necessidade da terceirização denuncia a diretora de Saúde do Sindicato dos Servidores Municipais (Sindiserv), Fernanda Luiza Borkhardt. A entidade reconhece que a redução no número de profissionais impacte bastante na escala dos médicos, mas estranha a ausência de medidas pelo poder público.
— A situação dos enfermeiros é parecida: o número de profissionais é reduzidíssimo, e eles tem feito horas extras e geram bancos de horas para que a população não fique sem atendimento — exemplifica.
Pediatra no Postão, a médica Iara Cardoso, 65 anos, concorda que a situação causa prejuízos grandes e que pode indicar a intenção de terceirizar o serviço:
— Essa questão é preocupante porque estão sucateando o Postão. Esse sucateamento e a intenção de terceirizar os serviços começou lá atrás, mas agora está escancarado. Não tem pediatras e, na UPA, muitas crianças são atendidas por clínicos gerais e tem de voltar ao Postão para serem atendidas por nós. Ao invés de equipar o Postão como um serviço de emergência e urgência qualificado, preferem sucatear para terceirizar —critica.
Outro médico que preferiu não se identificar relata que, em muitos casos, os pais que procuram o Postão no fim de semana são orientados a voltar na segunda-feira caso não tenham como ir até a UPA, já que o transporte que passa em frente ao pronto-atendimento não funciona após as 23h. A assessoria de imprensa da UPA nega que clínicos gerais estejam atendendo crianças, e afirma, inclusive, que um terceiro pediatra é chamado para atender aos domingos.
A secretária Deysi rebate a denúncia e diz que em horários em que não há ônibus, as crianças são levadas até a UPA pela equipe de saúde. Sobre o possível sucateamento proposital para terceirizar o serviço, ela é enfática: a proposta de tornar o atendimento terceirizado já foi apresentada à comunidade, e fica clara a intenção do município de aderir ao projeto. No entanto, a falta de pediatras não é proposital.
— O projeto de gestão compartilhada foi bem explicitado, não foi nada obscuro e é a nossa grande proposta para a resolução da saúde básica. Mas não estamos forçando nenhuma situação para convencer a população da necessidade de terceirização. O que acontece é que há muita gente se aposentando, e os médicos chamados não estão aceitando. É isso. Não há nada escondido — garante.
Nas UBSs e na área privada, pediatras são escassos
A falta de pediatras nas unidades básicas de saúde (UBS) de Caxias do Sul é um recorrente entrave que a Secretaria de Saúde também precisa resolver. Em alguns casos, a situação persiste há anos, mas a falta de profissionais piorou recentemente em função da exoneração e demissão de médicos da rede pública. Pacientes que costumam ser atendidos na UBS Campos da Serra, por exemplo, têm consultas desta especialidade agendadas para a UBS Diamantino. Em abril, o Pioneiro mostrou que o atendimento é insuficiente em pelo menos 10 UBSs.
Caxias do Sul se mostra como uma exceção no país, já que o estudo da Demografia Médica no Brasil, de 2015, aponta que a pediatria é a segunda área com mais profissionais no Brasil. Em fevereiro, o Pioneiro mostrou que o problema existe também na área privada. A reportagem contatou 30 pediatras ligados a um dos planos de saúde de Caxias. Desses, oito informaram que não marcavam consulta para novos pacientes, 11 tinham horário disponível até o final de fevereiro, nove poderiam atender somente a partir de março e dois deles só tinham agenda para depois de abril. O levantamento, portanto, mostra sinais claros de que há escassez na quantidade de profissionais disponíveis para a população.
— Não estão faltando pediatras no mercado. Faltam pediatras nos lugares em que os profissionais não são bem remunerados, mas isso ocorre em qualquer área. Os valores pagos aos médicos hoje são ridículos. Não dá para querer que um pediatra mantenha um consultório com secretária, luz e água, recebendo R$ 70 ou R$ 80 por uma consulta, isso sem contar os impostos. Também não dá para aceitar que um profissional se dedique à rede pública ganhando pouco mais de R$ 3 mil por 12 horas semanais — afirmou em entrevista Ércio Amaro de Oliveira Filho, diretor do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers).
Especialização pode passar para três anos
Prova de que ainda há interesse de médicos pela especialidade é que o curso de residência médica em pediatria, oferecido no Hospital Geral (HG), entrevistou 30 candidatos para cinco vagas neste ano. O curso existe desde 2008 e sempre houve grande procura de profissionais, garante a coordenadora Ana Paula Agostini.
— Ser pediatra é uma profissão que não cuida só do bebê. Ele trata a família inteira, e eu acho que as pessoas que escolhem ser pediatras sabem, e são ensinadas, que não há diferenciação entre serviço público e particular — descreve.
Atualmente, a especialização compreende dois anos de estudo além dos seis de faculdade. Tratativas da Sociedade Brasileira de Pediatra indicam, segundo Ana Paula, que o curso passe a três anos de duração em breve.
— Vamos formar um pediatra generalista ainda mais capaz. Sabemos que cerca de 30% dos formados ficam em Caxias. Outros seguem para outra especialidade e alguns voltam para suas cidades. A ausência de pediatras na área pública não é exclusividade deste segmento. É a situação da saúde pública que deixa assim a escassez de todas as especialidades — diz a coordenadora.
Há também quem tenha a pediatria como sonho. A médica bento-gonçalvense Maria Julia de Andrade Tosi, 28 anos, cursa a especialização no Hospital São Lucas, da PUC, em Porto Alegre. A rotina de residente é corrida e passa por vivências em diversos ambientes hospitalares, de consultório até UTI neo-natal, sempre supervisionada por professores.
— A Liga de Pediatria da UCS é uma das mais concorridas, tamanho interesse dos colegas. E a residência é prática, entramos no hospital às 8h e saímos às 17h, e fazemos plantão aos fins de semana também. Eu escolhi a pediatria antes da medicina, e tenho certeza que jamais me arrependerei da minha escolha—defende.