Quem vê o sorriso largo e o brilho nos olhos de João Vitor Vieira Fernandes não imagina os obstáculos que ele precisou superar ao longo de seus 21 anos. Portador de uma deficiência mental, o jovem se esforça ao máximo para não deixar que a limitação se torne protagonista da sua vida. De fala espontânea e tranquila, João revela o quanto é feliz por ter tido a oportunidade de ser inserido na sociedade por meio da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).
– Não tem graça ficar só em casa. O que eu mais gosto é de estar com as pessoas, poder conversar, aprender com elas e mostrar que somos todos iguais. Minha família e todos os amigos que já fiz me fazem muito bem, a gente tem carinho um pelo outro – conta ele.
Assim como João, outras dezenas de crianças e jovens de Caxias do Sul encontram na Apae o espaço ideal para superar as barreiras do cotidiano, conquistar a independência e correr em busca dos seus sonhos. A entidade, que completa 60 anos no dia 6 de setembro, enfrenta desafios como o corte de verbas e a redução de doações nos últimos anos, reflexos da crise econômica que o país vive. Porém, nada disso tira a vontade da equipe de comemorar _ com um jantar beneficente que ocorre hoje, no Recreio da Juventude _ uma história regada de amor e dedicação.
– Sempre tivemos problemas, mas nada tira a vontade de ajudarmos quem mais precisa. Nada diminui a alegria em fazer a diferença. É por isso que vamos comemorar sempre – diz a presidente a Apae de Caxias, Fátima Prezzi Randon.
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Foi por conta de todo o carinho que recebeu que João tornou-se exemplo de superação: um dos 86 alunos da Escola Especial da Apae, o rapaz não faltou nenhuma aula desde que começou a frequentar a entidade ainda bebê. Morador do loteamento Tijuca, onde vive com o pai, duas irmãs, os sobrinhos e a cachorrinha Meg, como fez questão de frisar, o rapaz participa de diversas atividades socioeducativas, além de aulas pedagógicas.
Das coisas que mais motivam João a levantar cedo todos os dias para ir à escola, está o carinho e a gratidão que nutre pela professora Doralice Polly, que há anos ajuda na evolução dele.
– Ela é como se fosse uma segunda mãe, eu a amo porque ela faz de tudo para fazer feliz eu e meus colegas. Ela coloca música para a gente ouvir e também notícias. Passamos todo o tempo aprendendo e conversando sobre a vida. Mas quando toca alguma música ruim, a profe troca rapidinho – entrega ele.
A música, aliás, é a grande paixão de João. O jovem decorou diversas canções, principalmente, dos sertanejos Zezé di Camargo e Luciano, dupla que ele é fã. Inclusive, durante entrevista ao Pioneiro, ele cantou um trecho da música "Nosso amor é ouro".
– Na Apae, eu aprendi que sou capaz de realizar tudo que eu quiser. É por isso que sonho em conhecer o Zezé e o Luciano. E eu sei que um dia vou conseguir – confia.
A história de João é um recorte das mais de 500 pessoas com deficiências intelectual ou múltipla que tiveram a chance de crescer sob os cuidados da entidade. A associação também é mantida por meio de verba pública repassada pelos governos federal e municipal.
– Sentimos que todos se envolvem de coração por esta causa. São 60 anos de dedicação ao próximo, com muito amor, prazer e satisfação. Seguiremos sempre motivados a dar o nosso melhor para os alunos – conclui a presidente.
Superação cercada de muito amor
Não existe cálculo capaz de medir o amor entre mãe e filha, mas o sentimento transborda na relação de Caroline Borges Lima, 20 anos, e Luci Inês Borges, 37. As duas são cúmplices e lutam juntas por uma vida de igualdade dentro das diferenças que o destino colocou em suas mãos. A jovem nasceu com paralisia cerebral e interrompeu a rotina que a família tinha antes. Das diversas decisões que Luci precisou tomar, a mais importante está a inscrição da filha numa unidade da Apae. Foi em Cambará do Sul, cidade onde Carol nasceu, que a jovem começou foi inserida num mundo, antes, desconhecido.
_ Eu não consigo mensurar o quanto ela evoluiu ao fazer parte da Apae. Quando nos mudamos para Caxias, fui logo procurar uma vaga para não tirar da Carol o que ela mais ama. As aulas, os amigos, tudo que ela tem e muito do que ela é se deve ao trabalho da Apae _ afirma a mãe, que há cinco anos veio para Caxias com a família em busca de mais oportunidades.
Cadeirante, a garota conta que adora as aulas de pintura e informática, que ela frequenta três vezes por semana na escola especial. Em casa, são as novelas e filmes que ganham sua atenção. Foi pela televisão, inclusive, que Carol teve uma ideia: cortar o cabelo e doar para crianças em tratamento contra o câncer.
_ Eu cortei bastante, porque queria ajudar as pessoas. Aquele dia foi muito legal, me senti feliz demais _ diz ela, que mora com a mãe, o padrasto, a irmã e os avós numa casa do bairro São Ciro.
Apesar de enfrentar desafios diários, principalmente, por conta a falta de acessibilidade, engana-se quem pensa que mãe e filha se entristecem fácil. Com sorrisos de orelha a orelha, Luci e Carol são só gratidão.
_ Não existem obstáculos para quem acredita num mundo melhor. Quando vejo minha filha se esforçando para viver a vida do jeitinho que ela quer, enxergo o quanto acertei em colocá-la na Apae. E vou seguindo a vida sempre se cabeça erguida, aberta para tudo que há de melhor para ela _ resume Luci.
Busca incansável pela inserção na sociedade
A Apae de Caxias, que é uma das mais antigas do país, mantém três espaços na cidade. No bairro Cinquentenário, além da sede, existe o Centro Ocupacional Santa Rita de Cássia, onde são oferecidas oficinas profissionalizantes. No Bela Vista, fica a primeira extensão Dovíglio Gianella, que também disponibiliza atividades a pessoas com diferentes síndromes. A entidade faz ainda um trabalho de socialização através de atividades em grupos, passeios e momentos de integração entre alunos e familiares.
A psicóloga e coordenadora técnica da entidade, Simone de Antoni Perini, destaca a busca incansável pela inserção dos alunos na sociedade e no mercado de trabalho.
– Trabalhamos com três eixos: saúde, assistência e educação, mas nossa missão é possibilitar que todas as pessoas, independentemente das suas limitações, tornem-se, dentro do possível, independentes. Prestamos toda uma assistência de caráter preventivo, habilitador e reabilitador para incluir e integrar os alunos à vida comunitária – explica ela.
A Apae oferece aulas de alfabetização, fisioterapia, recreação, além de oficinas pedagógicas. Entre essas atividades, estão o aprendizado por meio de jogos, contação de histórias, artes e debates.
As despesas são custeadas com recursos dos governos federal e municipal, com doações de empresas e instituições, eventos beneficentes, além de carnês oferecidos por meio de telemarketing. Na instituição, atuam profissionais das áreas de assistência social, saúde, psicologia, pedagogia, oficineiros e monitores que desenvolvem atividades de socialização e desenvolvimento de potencialidades.
O "favorzinho" que dura 22 anos
Para amenizar a constante limitação financeira, a Apae de Caxias depende diretamente da participação de voluntários para recompor o quadro de profissionais, insuficiente à demanda. Embora disponha de um número restrito – em parte devido ao controle da própria entidade –, os colaboradores incorporam o mesmo espírito motivador de dedicação e amor demonstrados por pelos demais funcionários. E para os voluntários, a experiência, desde o início, supera o mero conceito de trabalho.
Um exemplo é o do reumatologista João Luiz Amadori Holtz, que há 22 anos presta auxílio como clínico geral a cada 15 dias para a entidade. Segundo relata, a oportunidade surgiu em forma de convite, ainda 1995, de uma amiga que conhecia a realidade da Apae.
– Ela chegou a mim e disse "João Luiz, gostaria de um favorzinho". Esse "favorzinho" já dura 22 anos. Mas a ideia de contribuir no suporte médico hoje é o menor dos aspectos, pois lá (na Apae), criei amizades e vínculos afetivos para a vida – conta.
Considerado o voluntário mais antigo da entidade, Holtz exalta o empenho de todos os profissionais que atuam na Apae. Ao todo, a entidade conta com o suporte de 30 voluntários, selecionados pela organização não governamental (ONG) Parceiros Voluntários.
– São pessoas que sentem prazer naquilo que fazem. E esse espírito contagia. Quando estamos envolvidos naquela realidade, percebemos que a decisão de nos doarmos preenche muito mais a nós mesmos do que a eles. No final das contas, embora eu preste um favor à entidade, me sinto favorecido por estar na presença daquelas pessoas – acrescenta.
Além de afirmar ter se sentido mais humanizado desde que passou a atuar como voluntário, Holtz diz compreender hoje os motivos de mães e pais se sentirem tão agraciados por conviverem com filhos com síndrome de down:
– É um carinho diferente, sem hipocrisia. Eles são naturais e demonstram tudo o que sentem de maneira sincera. Algumas pessoas sentem pena dessas famílias, mas não deveriam. Eles não são um peso ou um fardo, são uma benção – conclui. (Colaborou Mateus Frazão)