Durante anos, a prefeitura de Caxias do Sul vem gastando com a locação de salas e prédios para abrigar secretarias e outros serviços públicos quando poderia ter optado por usar os diversos bens imobiliários que tem à disposição. Muitos desses imóveis estão ocupados por terceiros sem o pagamento de aluguel e com a conta de água bancada pelo município. O agravante é que a cedência de parte desses prédios ou terrenos públicos envolve acordos informais, sem registro de contrato ou aprovação da Câmara de Vereadores, como exige a lei.
Será a primeira vez que a relação será levada a público, não apenas por decisão do prefeito Daniel Guerra, mas porque o Tribunal de Contas do Estado (TCE) também recomenda que dados sobre o patrimônio público fiquem acessíveis para fiscalização e cobrança por parte da população. Os responsáveis pelos imóveis onde a prefeitura entende que não há interesse público na cedência já receberam notificações para desocupação, o que vem provocando embates judiciais.
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Embora o prefeito tenha prometido a divulgação da lista somente para o dia 10 de agosto, um estudo preliminar desenvolvido por uma consultoria de São Paulo, na gestão de Alceu Barbosa Velho, já mostrava que havia mais de 150 terrenos ou prédios do município ocupados por terceiros, de forma ilegal ou com autorização.
O chefe de Gabinete, Júlio César Freitas da Rosa, diz que o levantamento das permissões de uso de terreno foi iniciado neste ano com o objetivo de reduzir gastos no Executivo. Até agora, surgiram pelo menos 70 situações em que pessoas jurídicas e físicas ganharam autorização para usufruir dos prédios e terrenos apenas por meio de uma simples conversa com representantes do município. Com a lista em mãos, uma das intenções é solicitar a saída de quem está assentado ilegalmente sobre as áreas públicas e identificar que imóveis poderiam ser reaproveitados por secretarias, que hoje pagam o aluguel de cerca de 80 salas privadas. O gasto com as locações passa de R$ 600 mil mensais.
Previsão na lei
A cedência de imóveis públicos para particulares é prática antiga no Brasil. Ao longo de décadas, dezenas de terrenos e prédios foram emprestados por sucessivos prefeitos em Caxias, boa parte com aprovação do Legislativo, para associações de moradores de bairro (Amobs), instituições que prestam serviços sociais para segmentos empresariais, cooperativas, CTGs, empresas, pontos de cultura, ONGs, associações esportivas e igrejas, entre outros. Como contrapartida, a obrigação dos permissionários é zelar pelo terreno e renovar o contrato a cada período ou devolver o bem. Em alguns casos, a concessão chega a 99 anos.
A legislação traz um benefício inusitado: todo imóvel sobre área pública tem direito à ligação de água sem a obrigação de pagamento de taxa _ mais de 70 endereços assim já foram identificados pelo Serviço Autônomo Municipal de Água e Esgoto (Samae).
A justificativa para as chamadas cessões sempre envolveu o caráter comunitário ou supostas vantagens à população, prerrogativas que perderam o sentido ou se desvirtuaram ao longo do tempo por parte de alguns beneficiários. Há ocupações que chamam a atenção porque não remetem a um trabalho social, caso de um posto de combustíveis que opera sobre um lote em área central (leia mais na página 16) ou de entidades que alugam os espaços para eventos com a cobrança de ingresso.
A reportagem constatou que a lista do prefeito, porém, não abordará um problema grave: muitos lotes que poderiam abrigar pequenas praças ou equipamentos públicos foram ocupados ilegalmente por famílias de diferentes classes sociais ou empresas. Hoje, separar o que é público do que é privado exige uma avaliação profunda, que pode resultar em demorados processos de reintegração de posse. Quem quem perde com isso tudo é a coletividade.
ENTENDA
Confira quais os tipos de ocupações de áreas do município em vigor atualmente:
Permissões de uso
:: As permissões são atos administrativos do Executivo, com aprovação do Legislativo, que permitem a ocupação de áreas públicas por instituições sociais da indústria ou comércio, entidades de prestação de serviços de saúde ou de assistência social, associações culturais, esportivas ou comunitárias. A finalidade, em tese, é a prestação de serviços para a população. Como não envolve serviço de concessão, a legislação não prevê a necessidade de licitação para emprestar os terrenos. Portanto, é o critério comunitário que embasou muitas decisões do passado. Em muitos casos, o contrato celebrado entre a prefeitura e entidades define que o prédio construído sobre o terreno, em caso de rescisão, fique em poder do município sem a necessidade de indenização ou ressarcimento de gastos a quem manteve a área.
:: Nessa situação, estão enquadrados contratos de grandes áreas, caso do Complexo Dal Bó, ocupado em parte pelo Serviço Social da Indústria (Sesi), no bairro Fátima, ou de prédios históricos como o da antiga Cantina Antunes, sede atual da União de Associações de Bairro (UAB) e de outras entidades. O Sesi e a UAB, por exemplo, têm contratos celebrados por 99 anos cada um. Há outros exemplos que envolvem a cedência de áreas públicas por 10 ou 20 anos para associações esportivas ou entidades que prestam serviços comunitários.
Cedência de área sem contrato
:: É a parte mais polêmica da relação levantada pela prefeitura. Durante anos, famílias de servidores públicos ou da comunidade ganharam autorização para usar casas ou erguer construções sobre terrenos da prefeitura. A finalidade era fazer com que as famílias zelassem por outros bens públicos erguidos no mesmo local, como quadras de esporte ou centros comunitários. Essas autorizações, porém, eram negociadas informalmente, isto é, não constavam no papel e são consideradas ilegais do ponto de vista do Executivo. Agora, as famílias lutam na Justiça para não sair do terreno ou obter uma indenização pelo patrimônio construído. Nos mesmos moldes, foram cedidas áreas para empresas ou instituições.
Invasões em áreas verdes
:: É um dos maiores problemas enfrentados pela prefeitura, mas que não constará na relação da prefeitura. As invasões mais difundidas, em sua maioria, envolvem famílias pobres que erguem casas sobre áreas verdes. Há comunidades que se consolidaram com o tempo e os moradores ganharam o título de propriedade. Contudo, há invasões mais discretas e raramente debatidas, que ocorrem em bairros nobres, onde casas ou empresas avançaram sobre áreas verdes, faixas de domínio de estradas e calçadas, entre outros espaços públicos.