A peregrinação até o Santuário Diocesano de Nossa Senhora de Caravaggio é recheada de simbolismo. Há quem desperte cedo, calce o tênis mais surrado, vista uma roupa confortável e siga em silêncio por quase 20 quilômetros. Alguns levam crianças no colo, rezam o terço ou até cantam baixinho – e há quem caminhe em grupos de amigos, com conversas informais e que injetam o ânimo necessário para o longo percurso.
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Estudiosos dizem que o trajeto muda o romeiro: a paisagem, o cansaço e, por fim, a fé, são itens que colaboram para que o espírito de cada peregrino se altere positivamente a cada quilômetro. O que move os peregrinos é a extensa coleção de milagres testemunhados por quem credita à santa conquistas e salvações. Mas não é só isso: a Serra respira religiosidade porque acredita que isto a pertence.
– Houve um adensamento populacional em Caxias do Sul, Farroupilha, cidades que cresceram bastante. E vez ou outra, há mudanças na própria devoção, porque chegam imigrantes com outras religiosidades. Mas em Caxias, mesmo com a diversificação populacional, é mantida a estrutura da devoção. Isto não morre porque o devoto precisa disso, e a devoção é capaz de transformar a pessoa – acredita o pesquisador Adimilson Renato da Silva, co-autor do livro A Devoção a Nossa Senhora de Caravaggio: das Maneiras de Negociar a Realidade e Expressar a Fé.
A cidade italiana onde o bispo da Diocese de Caxias do Sul, dom Alessandro Ruffinoni, cresceu fica na província de Bérgamo, distante cerca de 60 quilômetros de Caravaggio. A nomeação para atuar como bispo justamente em uma comunidade brasileira onde existe devoção tão forte pela santa é também uma graça. Semelhante àquela que o religioso diz ter recebido por volta dos 11 anos, quando entrou para o seminário e iniciou os estudos sacerdotais:
– Eu sonhava ser padre. Então, desde aquela idade, eu rezava duas Ave-Marias todas as noites. E pedia para Maria, sobretudo Caravaggio. E realizei meu sonho de ser padre. Sobre a romaria, muita gente espera ansioso pela chegada deste dia. E isso acontece porque ela é nossa mãe – afirma o bispo.
Caravaggio é quase unanimidade
Ainda que a romaria seja um evento de cunho católico, ela atrai tantos simpatizantes que se torna quase ecumênica. Prova disso é que espíritas, umbandistas e até evangélicos se juntam à multidão e demonstram respeito pela religiosidade do momento. Segundo o presidente do Conselho de Igrejas Evangélicas de Caxias do Sul, David Scherdien Santos, é o desejo pela caminhada e pelo espírito de companheirismo aos amigos, por exemplo, que pode levar evangélicos a caminharem até o Santuário.
– Sempre lembrando esta diferença importante de que não veneramos santos, e de que respeitamos Maria como mãe de Jesus – complementa.
O momento de tensão econômica e política que vivemos pode levar ainda mais devotos a participar da romaria, acredita o reitor do Santuário, padre Gilnei Fronza.
– Depois de 138 anos, ela (Caravaggio) dá uma resposta àquilo que todos nós precisamos. As pessoas que aqui chegam encontram essa condição de sentir a paz, de fazer o bem, e de se propor a nos ajudar a dar os passos seguintes na sua vida. Ela nos marcou e nos ensinou muito – afirma o padre.
Seu Bassotto foi desenganado
Completam-se agora 138 anos do milagre que devolveu a água a um pequeno povoado de Farroupilha, que amargava uma seca de mais seis meses. Esta foi a primeira graça reconhecida na Serra. Após a notícia se espalhar, os moradores passaram a recorrer a Caravaggio sempre que necessário. Parte dessa história é contada em um documentário lançado ontem no Santuário. Graças a Nossa Senhora de Caravaggio será exibido de forma permanente no Memorial dos Devotos e reúne mais de 30 depoimentos.
Para o eletricista de automóveis José Bassotto, 59 anos, não há graça maior do que a recebida em sua família. Ele contraiu meningite com um ano de idade. A situação se mostrou tão grave que a junta médica do hospital deixou a criança em um espaço envidraçado – era ali que os bebês eram expostos para a família se despedir. Os médicos teriam pedido que a família se preparasse para o velório.
– Eu já estava naquela vitrine para meus pais me darem tchau. Meu pai saiu do centro de Farroupilha e foi até o Santuário, às 10 da noite. Ele dizia "não leva meu filho embora". Foi e voltou a pé. Quando ele voltou, eu dava pulos na cama. Ele só me pegou no colo e fui para casa. Depois desse dia, nunca mais entrei em um hospital – conta Bassotto.
A família passou a peregrinar anualmente como forma de agradecimento. A irmã de Bassotto, que não caminhava, ia até o Santuário na carona de uma mula. Após isso, ele passou a atuar como voluntário na Diocese de Caxias e coordenar a pré-romaria dos carros antigos. A bordo de uma caminhonete Chevrolet 1954, ele transporta a santa até o Santuário.
– Para mim, Nossa Senhora de Caravaggio é tudo. E espero que seja para outras pessoas também. O meu refúgio é o Santuário. Quando algo não está indo bem, largo tudo e vou pra lá – afirma.
Fazer o bem para agradecer milagres
Os casos narrados no documentário Graças a Nossa Senhora de Caravaggio, produzido pela Digital Felling, foram garimpados em uma infinidade de histórias. O trabalho reforçou até as crenças religiosas do produtor Tiarli Chedid:
– Sempre simpatizei com a fé pela santa, e isso só nos faz refletir e, claro, emocionar – resume Chedid.
Outra história relatada na gravação é a da família caxiense Fioravanzo. A trajetória deles começa há mais de 50 anos, quando a mãe do representante comercial Airton Luis, 59 anos, adoeceu. Dona Angelina perdeu três filhos logo que nasceram. Uma das crianças até recebeu o nome de Joaneta (a mulher que testemunhou a aparição de Caravaggio) mas, por algum motivo desconhecido, elas não resistiram. A vizinhança prometeu, então, que iria até o Santuário caso o próximo filho sobrevivesse. Quando Eva nasceu com saúde, os vizinhos caminharam até Farroupilha para agradecer - já que Angelina não teria saúde para isso.
– Nós rezávamos o terço todas as noites para agradecer – lembra Airton.
E a relação com a santa não acaba ali. Ainda que tenha nascido em 23 de maio, a filha de Airton, a advogada Rafaela, foi batizada no dia 26 de maio. Além de homenagear a santa, a ideia dos pais acabou também por incentivar Rafaela a se tornar devota. A confiança em Nossa Senhora ficou ainda mais evidente quando a jovem tentou engravidar e sofreu um aborto. A quem recorrer nesta hora? À mãe de Caravaggio, naturalmente. O pequeno Arthur veio logo em seguida, e Rafaela agradeceu de um forma diferente.
– Durante os nove meses de gravidez, ajudei crianças com deficiência. E também já ajudei pessoas com câncer a conseguir medicação na Justiça. Eu não prometo que vou caminhando até o Santuário, mas procuro ajudar quem precisa. Tenho certeza que é uma forma de agradecê-la – explica.
Unidos pela santa
A fé na santa passa de geração em geração. Exemplo disso é a família Fagherazzi. Do quintal de casa, os quatro filhos de Carlete, 48 anos, cresceram assistindo à romaria. Eles dizem que é impossível não se envolver com a maior festa da comunidade de Caravaggio. Prova disso é que Carlete trabalha há mais de uma década como ministra da Eucaristia, pessoa que pode distribuir a hóstia para os fiéis. Quem exerce esta função no Santuário tem direito a folga durante um fim de semana por mês. Quando a romaria se aproxima, o trabalho cresce. Isto porque o movimento no Santuário se intensifica e exige mais ministros entre o povo.
– É uma responsabilidade bem grande, porque precisamos receber bem as pessoas. E também fornecer informações para o público – explica Carlete.
Além disso, a família oferece toda a ajuda necessária à organização da romaria: os filhos lavam louça, recolhem talheres e se colocam à disposição da comunidade. Na última semana, eles trabalhavam arrumando as fitinhas de Nossa Senhora de Caravaggio que seriam comercializadas. O trabalho seguiria até hoje.
– Aprendemos que, em todos os momentos, existe uma mãe que olha pela nossa família – ensina Carla, 16.