Tinha 10 anos de idade quando o meu irmão Arthur nasceu. Ele veio ao mundo um mês antes da final da Copa do Mundo dos Estados Unidos, em 1994. Para mim, era tudo muito estranho. Sem entender direito, me tornava o filho do meio – com uma irmã mais velha para me cuidar e um mais novo para eu proteger.
Nos primeiros meses, tudo correu dentro do esperado. Era uma alegria diferente para todos nós. A vida estava renovada e eu tinha uma responsabilidade real pela primeira vez: servir de modelo para meu irmão mais novo. Porém, as coisas começaram a ficar estranhas. O Arthur não tinha o mesmo desenvolvimento dos bebês "normais". Para ele, era mais difícil engatinhar e arriscar os primeiros passos e palavras.
Começaram a aparecer as crises de choro e ansiedade. Aos poucos, tomamos consciência de que ele tinha alguma coisa. Mas o quê? Ele era uma criança linda, perfeita, sem qualquer indício físico de anomalias. Meus pais foram à luta sem pestanejar e sem negar as evidências. Procuraram todos os médicos e todos os tratamentos possíveis. Só que estávamos na década de 1990, e, por incrível que pareça, o autismo ainda era um mistério para a medicina. Pelo menos no Brasil. Perdemos um tempo precioso.
O preconceito que machuca
Chegava a hora de o Arthur ir para a escola, socializar, fazer amigos, começar a descobrir o encanto de ser uma criança em fase de aprendizado. Foi duro, principalmente para meus pais. Para mim também foi duro. Eu já tinha meus 14 anos, entrava com os dois pés na adolescência e enfrentava uma barra em casa que só quem tem uma pessoa com deficiência por perto compreende.
Ao mesmo tempo que sofríamos com as limitações do Arthur, sofríamos com o preconceito do qual ele começava a ser vítima e que não teria como escapar. Sim, vítima. Qualquer pessoa especial se torna vítima quando é ridicularizada por quem quer que seja. E não pensem que o preconceito vinha apenas dos coleguinhas – o que, até certo ponto, dá para aceitar. O preconceito vinha de adultos, de pessoas "normais", em todas as situações imagináveis: no shopping, no restaurante, na padaria, no supermercado, na cafeteria, na praia, no clube, no parque.
– Olha lá aquele louquinho.
– Que criança estranha.
– Olha como fala e se comporta.
– Que falta de educação, culpa dos pais!
Ele não conseguia manifestar tudo que sentia, mas sentia. De uma forma extremamente sincera, como é característica dos autistas. Sentia por não conseguir acompanhar o ritmo natural da vida. Sentia por ouvir piadas e grosserias gratuitas, sem saber o motivo. Sentia por tentar, tentar, tentar e não conseguir. Isso tem um motivo. As sinapses, nos autistas, são diferentes.
Nós sentíamos essa confusão também. É um ciclo perigoso, que pode levar a separações definitivas entre as pessoas se não houver tolerância, empatia e conhecimento de como lidar com as situações. Calma, harmonia e carinho são importantes.
Diagnóstico que liberta
O diagnóstico veio aos nove anos de idade. O mundo não caiu. Pelo contrário. Abriu-se uma porta libertadora. Era fundamental saber o que ele tinha para iniciar um tratamento efetivo. Nos anos 2000, a nossa vida tinha mudado definitivamente com a chegada do Arthur. Nunca mais os encontros familiares, os passeios e as atividades prosaicas do cotidiano foram iguais.
Confesso que, durante um tempo, tive vergonha de determinadas situações. Vergonha de que meu irmão pudesse ter um chilique na frente das outras pessoas ou de que ele pudesse falar algo de maneira totalmente deslocada. E aqui veio a primeira lição: eu deveria é sentir vergonha de ter vergonha.
Observando o comportamento dele, o meu e as reações de quem estava em volta, compreendi como o preconceito se manifesta. A conclusão que eu cheguei é que preconceito e intolerância estão intimamente ligados. A segunda lição: quantas vezes eu fui e sou preconceituoso com quem é diferente?
Não sinto raiva, desprezo ou qualquer outro sentimento negativo das pessoas que ofenderam o Arthur. Não me coloco acima delas, pois, como disse antes, eu posso ter feito isso em outras ocasiões, contra outras pessoas, sem nem mesmo perceber. Essa foi a terceira lição ensinada por ele. Hoje, passados 22 anos desta vivência, não posso mais me dar o direito de agir de maneira preconceituosa. É minha obrigação respeitar e compreender as limitações que as pessoas enfrentam, não importa quais sejam.
A quarta lição, portanto, é que é o Arthur quem me protege e é meu modelo, e não o contrário. Graças a ele, me defendo da minha própria ignorância e vou me tornando um pouco melhor todos os dias.
Navegar é sempre difícil
Arthur cresceu. Em Santa Maria, deixou muitos amigos e muita saudade. Em Porto Alegre, faz novos amigos e encontra outro sentido para a existência. Graças ao Clube Social Pertence, uma grande ideia de pessoas determinadas, ele convive com outros jovens especiais, com diferentes dificuldades. Encontrou uma namorada e um ambiente de compreensão, que estimula sua cidadania. A tempestade já passou, mas navegar é sempre difícil.
Ainda deparamos com inúmeras situações de preconceito e constrangimento. O que mudou, pelo menos para mim, é a forma de lidar com elas. Não acho certo devolver com uma agressão ou com uma grosseria. A própria pessoa se sentirá mal ao perceber que está sendo intolerante. Se não sentir nada, bom, eu lamento.
Renovo minha fé nas pessoas quando percebo que muitas delas não só compreendem limitações como a do Arthur como fazem questão de tratar bem e integrar seres humanos especiais como ele. Até o nascimento do meu irmão, nunca tinha dado bola para isso, e provavelmente não teria dado até hoje.
Aqui vai, então, a quinta lição: a tolerância não tem nada a ver com inteligência ou cultura, e sim com querer se transformar – seja pela experiência, seja pela observação. Independente do quão educados somos.