A divulgação, no dia 22 de dezembro, de uma série de fotos de uma tribo isolada em uma região de floresta no Acre, provocou uma onda de interesse internacional e uma reprimenda oficial. Ao mesmo tempo em que as fotos percorriam o planeta em sites, jornais e revistas, a entidade responsável pela política para os indígenas no Brasil, a Funai, divulgou uma nota oficial condenando a divulgação das imagens. Uma polêmica que chama a atenção tanto para o estado precário em que se encontram muitos povos indígenas no Brasil quanto para a falta de sintonia das políticas oficiais.
– De cara, o problema é que são fotos de um grupo social que não autorizou a sua publicação. A legislação garante aos índios esse direito, e deveria haver mais cuidado com esse processo. Mas o limão pode virar uma limonada se a repercussão produzir políticas no sentido de garantir o direito desses povos – comenta o historiador Henrique Kujawa, professor da Faculdade de Direito da Imed e autor do livro Conflitos territoriais envolvendo indígenas e agricultores (Editora CRV, 2015).
As fotos foram feitas pelo fotógrafo Ricardo Stuckert no último dia 18. Premiado internacionalmente e fotógrafo oficial da presidência durante os mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, Stuckert sobrevoava a floresta a caminho de outra aldeia, para uma sessão de imagens de um projeto que pretende registrar o cotidiano de tribos do país. Uma tempestade levou à interrupção da viagem e, no retorno, a aeronave sobrevoou o aldeamento isolado. As fotos foram publicadas no site da revista americana National Geographic, e a repercussão ganhou o mundo. Stuckert e o sertanista José Carlos Meirelles, que o acompanhava e que trabalhou para a Funai por 40 anos, justificaram a divulgação das imagens como forma de disseminar a existência dessas tribos isoladas e de seus problemas.
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– A proteção possível para esses povos é todo mundo saber que eles estão lá, porque quem os mata já sabe que estão. Esse pessoal fotografado deve ser da cabeceira do (rio) Humaitá, ali temos pressões de madeireiros, de mineradoras, até obras dos projetos do governo – concorda o médico Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina e participante do Projeto Xingu.
Contato pode expor indígenas a doenças
No dia seguinte à divulgação, a Funai emitiu uma nota repudiando a divulgação das imagens, que, nas palavras da entidade, "demonstra desrespeito aos povos indígenas isolados": "O teor invasivo do sobrevoo e, consequentemente, das fotografias pode ser percebido no semblante de terror dos indígenas e na postura de ataque ao empunhar arcos e flechas contra a aeronave, conforme registrado na própria reportagem. Os efeitos de uma violência simbólica desse nível são social e culturalmente imensuráveis."
Há bons motivos para a exigência de cautela no contato com índios isolados. Alguns são problemas históricos. Justamente por evitarem o contato com os não indígenas, eles são extremamente vulneráveis a vírus e bactérias que integrantes das sociedades urbanas carregam sem problemas. É bem documentada historicamente a devastação de tribos inteiras por doenças adquiridas dos brancos, mesmo uma simples gripe. Um grupo de índios Chitonawa que procurou a tribo dos Ashaninka em 2014 (veja quadro) logo precisou ser submetido a atendimento médico para tratamento de saúde.
– Já no primeiro contato, de sete pessoas, todos contraíram infecção respiratória. Se fosse gripe, seria mais grave. Isso representa um risco a mais, porque quando você está doente, volta para casa, para seus parentes. E assim, índios que adoecem no contato contaminam uma tribo inteira. Nossa história é recheada desses exemplos – diz Rodrigues, que foi chamado para atender o grupo.
A própria desinformação do público acerta do caráter "exótico" dessas tribos, a cada vez que uma delas é fotografada, é um problema, para muitos especialistas.
– Temos um fetiche dessa figura dos indígenas isolados, o que atrai jornalistas, pesquisadores e missionários que, no passado, já causaram problemas graves. Temos uma série de comunidades que costumam ser alvo de pessoas que às vezes têm a ideia de que vão ali salvar a humanidade em estado virgem – diz Spensy Pimentel, antropólogo sul-mato-grossense e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Sucateamento da Funai dificulta a proteção
A Funai não chega a ser totalmente contra a divulgação de fotos de indígenas isolados, tanto que ela própria realiza levantamentos periódicos dessas aldeias e já intermediou a divulgação em situações semelhantes. Mas afirma ser necessário manter o controle do processo. Além da exposição a doenças, as tribos estão expostas perigos que a própria fundação tem sido cada vez menos eficiente em combater.
– Esses povos estão extremamente ameaçados por frentes de expansão de petróleo, madeira, agricultura e pecuária, essas, aliás, quase sempre feitas por gaúchos, missionários proselitistas e projetos de desenvolvimento empreendidos pelo próprio Estado brasileiro – lembra a antropóloga Barbara Arisi, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
Muitas vezes, as iniciativas de proteção esbarram nas próprias atividades dos governos responsáveis pelas políticas indígenas, por um lado, e por vultosos programas de expansão econômica e de infraestrutura na região. Não é por acaso que um dos maiores focos dos contatos com tribos antes isoladas – que aumentaram sensivelmente na última década devido ao gradual encolhimento do território em que poderiam viver em isolamento – têm se dado em regiões do Acre que fazem fronteira com o Peru, em que os governos de ambos os países vêm pondo em ação projetos desenvolvimentistas ou de ampliação ao agronegócio.
A Funai sofreu cortes orçamentários que afetaram sua capacidade de monitorar comunidades indígenas. Apenas este ano, o orçamento geral autorizado, de R$ 653 milhões, sofreu redução de 23% em relação a 2015, o que equivale a R$ 150 milhões a menos em caixa – maior corte anual desde 2006. A entidade opera atualmente com 36% da sua capacidade total de servidores e, em outubro, enviou uma comunicação ao Ministério da Justiça afirmando que pode fechar metade de suas unidades administrativas.
– Se adotamos com esses índios, acertadamente, a política de não contato, isso pressupõe proteção de território, senão é puro abandono – diz o médico Douglas Rodrigues.
Outros casos
A diminuição gradual do território disponível para as tribos que optam por viver em isolamento, sem interação até mesmo com outros indígenas, tem aumentado as notícias de contatos e avistamentos na última década
2008
Uma expedição aérea realizada pela Frente de Proteção Etnoambiental da Funai na divisa do Estado do Acre com o Peru fotografou uma das tribos isoladas que vivem na região do Rio Envira. A divulgação das fotos foi feita pela organização Survival International.
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2011
Um subgrupo ianomâmi, o dos Moxihatëtëa (nome dado à tribo pelos ianomâmi, não corresponde a uma denominação própria do grupo), foi avistado durante uma atividade de reconhecimento aéreo da Frente de Proteção Etnoambiental ianomâmi. Esse subgrupo era considerado desaparecido desde a segunda metade dos anos 1990. Também em 2011, o mesmo grupo avistado em 2008 no Acre foi fotografado com mais detalhes.
2014
Uma família de índios Korubo deixou o isolamento na Amazônia e, voluntariamente, fez contato com a tribo dos Kanamari, que viviam próximos. Os Korubo foram contatados pela primeira vez por não indígenas em 1996 e foram quase dizimados em conflitos de terra. No mesmo ano, um grupo de jovens Chitonawa também fez contato com a Aldeia Simpatia, onde vivem os Ashaninka. Eles buscavam ferramentas e talvez armas para se defender dos constantes ataques de traficantes que usam seu território como rota e de madeireiros.
2016
Setembro
Indígenas isolados do povo Awá foram avistados por brigadistas que combatem o fogo no interior da Terra Indígena Arariboia, no Estado do Maranhão.
Setembro
Um aldeamento Moxihatëtëa para cerca de 100 habitantes na terra ianomâmi em Roraima foi fotografado. Tradicionalmente considerado inimigo dos ianomâmis do oeste e do sul, hoje esse grupo tem sido incluído pelos representantes ianomâmi nas reivindicações para que o governo garanta o direito ao isolamento dos povos nativos.