Um ano de investigação não foi o suficiente para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) definir se, afinal, houve fraude no ingresso de um aluno de Direito que tem pele clara mas se autodeclara cotista racial. O pró-reitor de Gestão de Pessoas, Maurício Viegas da Silva, decidiu reinstaurar o processo a partir do início – e sem prazo para conclusão.
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A mudança se deu após a universidade instaurar a comissão de investigação, ouvir as partes e elaborar um relatório de conclusão.A decisão sobre o caso não saiu devido ao teor do exame de regularidade feito pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e encaminhado à UFRGS. A universidade não esclarece o que diz a PGR. Nem Silva ou qualquer outra fonte fala oficialmente sobre o assunto, sob alegação de que o processo tramita em sigilo. A assessoria de imprensa da universidade apenas confirmou a reabertura do procedimento, ocorrida na sexta-feira (29).
De acordo com a instituição, o pró-reitor entende que uma nova averiguação é necessária porque "não estava esgotada a apuração, bem como para oferecer ao interessado o exercício de ampla defesa e ao contraditório".O caso ganhou repercussão, em julho do ano passado, após alunos do primeiro semestre do curso de Direito revoltarem-se com a matrícula do colega e denunciarem o caso. Houve discussão sobre quais mecanismos a UFRGS aplica para evitar possíveis fraudes no ingresso de cotistas.
A instituição confirmou que o único controle é a autodeclaração – ou seja, a decisão cabe ao próprio aluno. No edital do vestibular consta apenas que, em caso de fraude, o candidato perderá a vaga. A comissão responsável por investigar as denúncias havia entendido que não houve fraude. Mesmo com a pele branca, o aluno teria justificado o ingresso por ter familiares negros. Portanto, seria cotista por afrodescendência. Como o processo foi reaberto, uma nova comissão será formada para examinar o caso, e o estudante será novamente ouvido.
Na UFRGS, os alunos precisam indicar durante a inscrição no vestibular a forma de ingresso. No momento da matrícula, os aprovados por meio das cotas raciais devem entregar uma declaração justificando por que têm direito à vaga.Como não houve fim nas investigações, o aluno de Direito segue frequentando as aulas normalmente. O jovem está no terceiro semestre e trocou as aulas na turma da noite pelo diurno depois que os colegas denunciaram a suposta fraude. Ele apresentou denúncias de represálias sofridas pela turma desde que o caso veio à tona.
A advogada que representa o estudante de Direito, Wanda Siqueira, disse à Gaúcha que o jovem tem pai negro e a mãe branca, de origem italiana.
– Ele tem a pele branca, mas possui mais afinidade com a família paterna, que é toda negra. Então reunimos toda a documentação da família, incluindo depoimento do pai dele à comissão para comprovar que é pardo – disse ela.
A primeira estudante a denunciar o caso do colega à universidade se diz frustrada com a demora na solução para o caso. A jovem prefere não divulgar o nome e teme que a falta de punição abra precedente para outras pessoas de pele clara buscarem vagas na UFRGS com a justificativa de terem ancestrais negros. O que, na opinião dela, não seria correto.
– Se forem apurar melhor, talvez seja bom o processo ter sido reaberto. Mas o problema é que, agora, depois de tanto tempo, não tem mais como chamar alguém que ficou de fora por causa da fraude que ele cometeu – diz a estudante.
Ela ainda reclama que a universidade não deu nenhuma satisfação aos alunos que fizeram as denúncias desde junho de 2015.
– Eles (UFRGS) nos deram apenas um número de processo para acompanhar no sistema. E eu vi que o caso ficou mais de seis meses parado (de dezembro a junho). Vão retomar tudo de novo, é constrangedor – lamentou.
Outro estudante que denunciou o caso se reconhece como negro, mas não entrou por cotas por ter cursado o ensino médio em escola privada. Para ele, a universidade é conivente com a situação.
– Sou de família negra, que já passou por situações de racismo. E olho para ele e não consigo identificar nenhum traço da raça. É flagrante a fraude – avaliou.
UFSM criou comissão de verificação e entrevista candidatos cotistas
O caso do estudante de Direito expõe uma brecha na legislação federal. A lei 12.711 de 2012, também chamada de Lei das Cotas, reserva vagas nas instituições federais para pretos, pardos e indígenas que cursaram o Ensino Médio na rede pública. No entanto, não define as características de cada grupo e nem apresenta mecanismos para evitar fraudes.
Para concorrer por meio das cotas, os candidatos apenas assinam um documento de autodeclaração.Uma portaria publicada nesta terça-feira pelo Ministério do Planejamento determina que os editais dos concursos públicos dos órgãos federais deverão prever os métodos de verificação da autodeclaração, com a indicação de uma comissão para avaliar os casos.
O texto diz que o critério utilizado pela comissão será o fenótipo, ou seja, a aparência do candidato.O Ministério da Educação disse hoje à Gaúcha que não existe, pelo menos por enquanto, proposta de mudança na lei de cotas das universidades. Segundo o órgão, as instituições têm autonomia e cabe a elas definir mecanismos de regulação.A falta de uma política mais rígida de controle na UFRGS é alvo de críticas até mesmo dentro da universidade.
Vice-coordenador de Ações Afirmativas, Edilson Nabarro prefere não se posicionar sobre o caso específico do aluno de Direito, já que não acompanhou a investigação. Sobre o quadro geral, afirma que aceitar a matrícula como cotista racial de pessoas que não apresentam características fenotípicas – como a cor da pele, cabelo, traços faciais – dos negros é um erro, já que compromete o sucesso de uma política criada para reverter o déficit histórico de acesso dos negros ao ensino superior.
– A autodeclaração é reconhecida no campo dos direitos humanos, mas não tem valor absoluto. Precisa ser mediada por procedimentos envolvendo terceiros para que se consiga eliminar boa parte das motivações de falsidade ideológica. Quando esses procedimentos não estão formalizados, estamos estimulando os candidatos a se utilizem da falsidade ideológica – afirma.
O sociólogo acredita que a UFRGS poderia resolver esse tipo de impasse se criasse uma comissão para verificar as informações prestadas pelos cotistas no momento da inscrição no vestibular, incluindo no edital o procedimento para inibir as fraudes. Ele cita como exemplo a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), uma das pioneiras entre as federais na criação da comissão de avaliação.O presidente da Coordenadoria de Seleção e Ingresso da UFSM, Jerônimo Tybusch, afirma que o candidato cotista passa por uma entrevista com a comissão composta por professores e técnicos-administrativos antes de efetivar a matrícula.
Entre as perguntas, estão o porquê de se considerar negro, as características que o definem, se já sofreu algum tipo de preconceito, a origem da família.
– Não é uma análise simplesmente fenotípica, mas das características que definem a pessoa como preta, parda ou indígena. Essas características são as mais variadas, desde questões culturais, elementos sociais, a vivência – afirma o professor.
Ele reconhece que os critérios muitas vezes são subjetivos, mas garante que nenhum aluno foi excluído injustamente da UFSM. Nos casos em que a comissão decide pela perda da vaga, o candidato tem um prazo para contestar a decisão. Caso seja confirmada a posição inicial, o estudante é impedido de realizar a matrícula.Segundo Tybusch, a universidade nunca perdeu ação na Justiça de candidatos eliminados.
Desde 2014, foram mais de 20 que recorreram. Mas o professor afirma que o mais importante não é isso, e, sim, ver que o número de candidatos que tentam fraudar as cotas tem diminuído:
– A comissão vem desenvolvendo esse trabalho há muitos anos de forma séria e competente, e, em função disso, tem acontecido cada vez menos casos de indeferimento (perda da vaga) porque as pessoas que procuram realmente querem seu direito.
Primeira universidade federal a criar um sistema de cotas raciais, em 2003, a Federal de Brasília (UnB) utiliza fotografias dos candidatos, tiradas com o mesmo fundo e iluminação, para evitar fraudes. A relatora do processo de criação das ações afirmativas na instituição, Dione Moura, afirma que o modelo não é unanimidade, mas diz que as instituições precisam ter o mínimo de controle para tentar impedir as fraudes.
– Se a gente quer levar a sério uma ideia de ação afirmativa, que é regular uma desigualdade de acesso, o órgão responsável precisa ter elementos de verificação, seja por meio de fotografia ou de entrevista pessoal, assegurando que aquele candidato, por ser pessoa de aparência negra, sofre preconceito na sociedade – diz.
A UFRGS disse por meio da assessoria que haverá necessidade de rever os mecanismos de ingresso dos cotistas raciais, mas que ainda não está discutindo formalmente o assunto.