O lugar não era tão importante, mas o horário passou a ser crucial. Diariamente, a secretária Michele Lazzari, 32 anos, ficava atenta ao despertador, que a avisava: são 19h. Desde 11 de setembro do ano passado, nesse momento do dia, ela criou uma rotina. Sacava uma seringa da bolsa e aplicava a medicação na região próxima ao umbigo. Dor? Física, nenhuma, garante ela. O único temor que passava por sua cabeça era não conseguir levar até o fim a gestação após dois abortos. A cena se repetiu pelos 267 dias seguintes e serviu para que uma corrente de positividade se fortalecesse em torno da gravidez de Michele, moradora de Bento Gonçalves. Amigos, familiares e vizinhança sabiam que o primogênito Gabriel já nasceria campeão.
– Não me arrependo um minuto sequer do meu esforço. Agora, com ele aqui, tudo valeu a pena – orgulha-se.
O diagnóstico de trombofilia hereditária foi difícil de entender, mas esclarecedor. Por meio de uma investigação médica minuciosa, Michele descobriu que a doença, até então desconhecida por ela, era a razão da interrupção das duas gestações, ocorridas por volta da sétima semana. Na prática, Michele não conseguia passar alimento ao feto e ele não resistia – contradição no universo materno, que faz questão de ter os filhos por perto, sempre bem alimentados.
Com o diagnóstico, Michele decidiu arriscar e, três meses depois, a menstruação atrasou. Logo, ela garantiu a primeira das 267 doses de exoparina, medicamento anticoagulante. Precisou desembolsar R$ 50 por cada unidade. No sexto mês, o escritório de advocacia onde trabalha conseguiu garantir o direito à medicação via judicial. A primeira aplicação foi feita pelo pai do bebê, Leandro Lazzari.
– Ele só passou tranquilidade – emociona-se Michele, que tomou coragem para se autoaplicar em todos os outros dias.
De tantas picadas de agulha, a barriga estava sempre roxa, coloração que ela resume bem:
– Roxa de amor.
Gabriel nasceu no dia 13 de abril no Hospital Tacchini. Michele ficou 12 horas em trabalho de parto para que a medicação fizesse efeito. O menino nasceu com 45 centímetros, 2,6 quilos e pronto para deixar mais suave o dia das mães de Michele, que convive há 10 anos com a data sem a presença da mãe, dona Clarice Teresinha Fontana.
– Vamos almoçar com a dinda do Gabriel no domingo. Vai ser mais um dia feliz, como todos estão sentindo – afirma.
Foto repercute nas redes sociais
Logo que soube do diagnóstico de trombofilia, Michele passou a guardar as seringas que utilizava. Fez questão de armazená-las em uma caixinha para ilustrar uma foto do bebê recém-nascido. Um coração, desenhado com as 267 seringas, emoldura Gabriel. A foto compartilhada no Facebook da fotógrafa Andreia de Deus acumulava mais de 600 curtidas até a tarde de sexta-feira.
Nos comentários, depoimentos de outras mães que convivem com a doença e se identificam com a situação.
– Talvez uma mãe leia isso e se identifique com esses abortos que aconteciam de repente, do nada. Elas podem procurar informações e pedir ao médico muitos exames. Não desistam do sonho de ser mãe – aconselha Michele.
Doença é pouco comum
Eleonora Bedin Pasqualotto, professora de ginecologia e obstetrícia da UCS, explica que a trombofilia é pouco comum. A doença altera a coagulação do sangue e, se não tratada, pode levar ao aborto espontâneo ou à morte do bebê em caso de gestação mais avançada.
Em geral, exames em busca do diagnóstico são indicados para mulheres com histórico de trombose em si ou na família, outras alterações de coagulação do sangue ou AVC. O tratamento é feito com heparina durante toda a gestação e durante 45 dias após o parto. O medicamento é injetado na barriga, ao redor do umbigo, e faz com que diminua a coagulação do sangue.
– Mulheres que tiveram trombofilia têm mais chance de desenvolver trombose – aponta Eleonora.