
Crianças e adolescentes são obrigados a empreender longas caminhadas madrugada adentro apenas para chegar a um ponto de ônibus que os levará para escolas da rede estadual no interior de São Francisco de Paula. É uma adversidade só superada pela vontade de frequentar a sala de aula. O problema aflige famílias que moram na localidade de Pedra Lisa, no distrito de Cazuza Ferreira.
>> VÍDEO: veja imagens do estudante que caminha pela estrada com uma lanterna para chegar à escola
Alguns estudantes têm menos de 10 anos, e enfrentam o medo e o cansaço para andar numa estrada de chão às escuras para garantir presença no colégio. Caso contrário, os pais poderiam ser responsabilizados por negligência. A garotada pula da cama antes do sol despontar e segue por um percurso de lama e pedra de quase 10 quilômetros de ida e volta.
A única iluminação é o facho da lanterna que carregam. Chegam a percorrer quase 50 quilômetros em uma semana, o equivalente a duas romarias e meia de Caxias do Sul ao santuário de Caravaggio, em Farroupilha. O tempo gasto na caminhada varia de 40 minutos a uma hora e meia, dependendo do ponto de partida.
A situação seria provocada por falta de infraestrutura em Pedra Lisa, o que é contestado pelo prefeito de São Francisco de Paula, Juarez Hampel. Com trajeto ruim e esburacado, donos de micro-ônibus e kombis se recusam a buscar alunos perto de casa especialmente numa estrada onde moram sete famílias. O trecho é uma descida barrenta, sem cascalho. Os profissionais temem atolar veículos ou causar acidentes. A opção é deixar a garotada a pé na escuridão ou sob o sol abrasador.
Além de cadernos e livros, os alunos incluem no kit itens como lanterna, capa de chuva, roupas extras e botas para andanças por entre morros e plantações de pinheiros. Difícil é escapar da roupa embarrada ou molhada no inverno, ou do suor excessivo do verão, caso de Romário de Oliveira, 14 anos. Na madrugada de quarta-feira passada, o Pioneiro acompanhou a maratona do jovem no primeiro dia do ano letivo. A caminhada até um ponto de ônibus durou pouco mais de uma hora em ritmo apressado porque Romário saiu de casa mais tarde do que o costume. O tempo gasto geralmente é maior. Ele estuda na 7ª série da Escola Padre Ritter, em Cazuza Ferreira, e pega o ônibus a cerca de cinco quilômetros de casa, em Peda Lisa.
- Não gosto de ir muito ligeiro para não suar - confidencia o rapaz, que antes de embarcar num coletivo para ir para a escola troca a roupa suja de barro e suor na casa de primos na sede de Pedra Lisa
Por precaução, o estudante sempre tem a escolta de três cães de estimação: Baito, Pimenta e Taisso. Os cachorros seguem o dono até a metade do trajeto e voltam. Os tios, adoentados, não têm condições de acompanhar o sobrinho.
Às vezes, Romário topa com colegas pela estrada e partilha das conversas e brincadeiras pelo trajeto. O rapaz e colegas ignoram que perdem direitos estabelecidos por três leis diferentes: acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência e igualdade de condições para acesso e permanência na escola.
Poderia ser diferente se as oportunidades fossem equilibradas. É comum veículos carregados de alunos sortudos cruzarem pelos estudantes a pé. A situação não é de agora, alguns jovens estão nesse ritmo há oito anos. Para moradores, que tentam anexar o distrito a Caxias do Sul, tal sacrifício é desnecessário: bastaria patrolar e cascalhar a estrada com frequência para melhorar o fluxo do transporte escolar.
Famílias de outras comunidades, como a Estrada Velha e Fazenda do Contrato, enfrentam problemas parecidos. O caso de Romário, porém, é emblemático. Ele mora com tios no final de uma estrada que lembra um carreiro aberto a golpes de facão em Pedra Lisa, quase na divisa com Vacaria. O rapaz veio de Caxias do Sul com 11 anos para ajudar os tios Adão e Onélia nas lidas do campo. Desde então, acorda antes da cinco da manhã para ter tempo suficiente de embarcar no ônibus que o levará para a Escola Padre Ritter, em Cazuza Ferreira. Ele se pergunta apenas se não poderia ser mais fácil.