As expressões sisudas e a fala que não alterna ritmo ou tonalidade não ajudam a esconder um passado pesado, construído por lembranças que ninguém gostaria de carregar. Sentados lado a lado diante de um público de quase 200 estudantes do Colégio Emílio Meyer, três senhores que vivenciaram os piores horrores do século 20 se dispuseram a compartilhar suas memórias do holocausto, o genocídio que tirou a vida de cerca de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
A aula de História ficou por conta dos holandeses Bernard Kats e Johannes Hendrikus Melis, 76 e 75 anos, e do alemão Curtis Henry Stanton, 84. Todos eles perderam familiares e escaparam de ter suas próprias vidas ceifadas pelos exércitos antissemitas. O depoimento mais forte é de Curtis Stanton, um senhor que carrega no braço esquerdo a tatuagem que recebeu como identificação de prisioneiro dos nazistas (foto acima).
Quando a guerra começou, Curtis passou a sofrer na escola o preconceito dos colegas por ser judeu. Aos 12 anos, foi expulso por não aguentar calado as provocações. Naquele mesmo ano, sua família foi deportada de Hamburgo (Alemanha), onde vivia, e encaminhada para um gueto na Polônia. O transporte foi em um vagão de gado, de pé devido à superlotação, sem comida, bebida e sem as mínimas condições de higiene.
Curtir tinha 15 anos quando chegou com a mãe ao campo de concentração de Aushwitz, palco das piores atrocidades nazistas. Estava ao lado dela quando percorreu uma longa fila de judeus. No final da fila, soldados alemães separavam aqueles que iriam morrer na câmara de gás dos que seriam preservados para prestar trabalhos ao exército de Adolf Hitler. Curtis mentiu a idade. Disse ter 17 anos e foi poupado, sem nunca saber o motivo. Sua mãe, porém, foi para o outro lado da fila, condenada à morte na câmara de gás.
Nos campos de concentração, Curtis trabalhou com fundição e fabricação de munição para os nazistas.
_ Éramos chamados para assistir ao enforcamento daqueles que tentavam fugir _ lembra.
Quando a guerra chegava ao fim, Curtis estava em um caminhão de prisioneiros abandonado pelos soldados após sofrer um ataque aéreo. Sem saber se estavam livres, ele e os demais caminharam a esmo até serem acolhidos por soldados ingleses. Conseguiu chegar à França, onde se reuniu com familiares sobreviventes e morou até 1958. Naquele ano, a empresa em que trabalhava o enviou para o Brasil, onde vive desde então, em Porto Alegre.
_ Foi um longo caminho até me reabilitar para levar uma vida mais humana e civilizada.
Informar para não repetir
Os holandeses Johannes Hendrikus Melis (ao microfone, na foto), 75, e Bernard Kats (E), 76, mal tinham aprendido a caminhar quando suas famílias se envolveram com a II Guerra. Seus relatos são uma homenagem ao pais, um católico membro da resistência holandesa, que escondeu famílias judias em casa após a invasão da Holanda pelo exército nazista. Os refugiados eram postos atrás de armários giratórios e até em um buraco sob a pia.
O pai de Johannes é considerado Justo Entre as Nações, como ficaram conhecidas pessoas que salvaram famílias judias durante a guerra. Embora tivesse apenas três anos à época da invasão, o holandês disse ter vivas na memória as imagens do heroísmo do pai e lembra as desculpas que ele inventava para soldados alemães que iam até sua casa:
- Meu pai se escondia e minha mãe corria para o quarto, ficando na cama como se estivesse doente. Eu e meu irmão atendíamos a porta e despistávamos os nazistas - recorda Johannes, que é naturalizado brasileiro e vive no país desde 1951, em Porto Alegre.
Para Bernard Katz, judeu, a infância foi um sofrimento muito duro de superar. Ele afirma ter feito terapia por 30 anos, sendo que nos primeiros 20 não conseguia abordar os primeiros anos de sua vida. Sua família foi perseguida pelas tropas de Hitler e o pai foi morto em um campo de detenção na Áustria. Bernard nunca esqueceu da expressão de sua mãe ao receber o aviso da morte do marido:
- Até hoje a vejo com a carta na mão, à porta de casa. Seu cabelo ficou grisalho da noite para o dia.
Nos anos seguintes, Kats e sua irmã foram entregues a uma comunidade religiosa protestante, afastados da mãe. Precisaram trocar de identidade e passaram por sete endereços diferentes, escondidos por famílias solidárias. Após a guerra, sua mãe emigrou para o Uruguai. Em 1970, a empresa onde ele trabalhava o convidou para atuar em Porto Alegre, onde ele vive desde então.
- O mais difícil é superar o sentimento de culpa. Por muito tempo tive em mente a pergunta: por que eu sobrevivi, enquanto tantos morreram, inclusive meu pai? - conta.
Kats avalia que há muita desinformação sobre o holocausto e considera isso preocupante. Por isso, acha importante o trabalho que ajuda a desenvolver com o público jovem, compartilhando as lembranças que que durante tanto tempo não abria nem para si mesmo:
- É necessário informar, discutir e saber que todos tempos nossos preconceitos. A arte é saber conviver com isso.
O jantar/palestra com os sobreviventes do Holocausto é organizado por duas instituições judaicas de defesa dos direitos humanos, o Instituto Cultural Judaico Marc Chagall e o B'rai B'rith. Em cinco anos, já percorreu mais de 30 escolas e universidades. O Emílio Meyer foi o primeiro colégio de Caxias a abraçar o evento.