Enquanto corta o pasto para alimentar os animais e tira leite das vacas a cada amanhecer, a agricultora Laci Recktenwald, 48 anos, agradece por estar em casa, junto do marido, Plínio, e dos filhos Rogerio, 26, Alexandre, 25, Adriano, 23, e Juliano, 20, após um longo período de provações e dificuldades.
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Há 12 anos, em maio de 2001, Laci largou a vida na quase isolada localidade de Nova Holanda, interior de Brochier, município vizinho a Montenegro, e se mudou para o Hospital Pompéia, em Caxias do Sul, para acompanhar Adriano. Portador de uma doença genética rara, a Síndrome de Mórquio, o jovem enfrentou complicações respiratórias quando tinha 12 anos e precisou ser internado na unidade de terapia intensiva (UTI) do hospital.
- Fizemos uma excursão com a escola ao zoológico no Dia das Mães e, na volta, ele ficou muito gripado. Como a situação piorou, na quinta-feira, levamos o Adriano para o hospital em Salvador do Sul. De lá, foi preciso encaminhá-lo ao um lugar que tivesse um respirador de UTI. Não havia vaga em Montenegro, então tivemos de transferi-lo para Caxias - recorda Laci.
O que nem ela nem a família imaginavam é que a permanência numa cidade grande e estranha fosse se prolongar tanto. Adriano ficou na UTI do Pompéia por um ano e seis meses. Não por causa da doença, mas porque o jovem precisa estar permanentemente ligado ao respirador para viver.
- Eu passava o dia inteiro ao lado dele. Às vezes, pegava ele no colo, passeava nos corredores, ia até a capela. Era um jeito de fazer o tempo passar - revela Laci, que dormia em uma poltrona ou sobre almofadas, junto ao leito do filho.
Vez por outra, ela voltava para Nova Holanda para ver como o marido estava se virando com os outros filhos. Alexandre e Rogério também sofrem da síndrome e têm dificuldade para se locomover. Juliano não tem a doença, mas como era pequeno, também necessitava de atenção.
- Para eu poder ir para casa, o pessoal do hospital tinha de sedar o Adriano, senão ele não suportava ficar lá sozinho. Eu ia na sexta e na segunda já estava de volta. Nem bem chegava em casa e o Adriano já estava me ligando - recorda Laci.
Em casa, Plínio teve de aprender na marra as tarefas que a mulher fazia diariamente: lavar, passar e separar as roupas, fazer comida, limpar a casa, dar banho nos meninos... Com pouco tempo para tantas tarefas, o agricultor teve de deixar de lado o trabalho na roça, o que encurtou ainda mais o orçamento.
- Foi um período de muito sacrifício para todos. Para mim, que fiquei aqui sozinho, e para ela, lá em Caxias, sem perspectiva de vir para casa - afirma Plínio.
A única chance de Adriano voltar para casa era a família adquirir um respirador e montar uma espécie de UTI na residência. O problema é que o aparelho custava cerca de US$ 8 mil (na época, cerca de R$ 24 mil) e os Recktenwald não tinham condições de comprá-lo.
- Um dia, quando eu estava em casa, vi uma reportagem na TV que falava de uma campanha para comprar o respirador para uma criança de Canoas. Na hora, eu pensei: " Por que eu não faço isso também?". Voltei a Caxias e fui procurar a imprensa. Eu não conhecia nada, não tinha experiência, mas estava decidida a batalhar pelo meu filho e fui pedindo uma informação atrás da outra até que consegui chegar - revela Laci.
Com ajuda da RBS TV, do Pioneiro e das rádios da cidade, a família lançou uma campanha para arrecadar recursos em agosto de 2002, quando Adriano já acumulava um ano e três meses de Pompéia.
- Naquela época, a gente estava sempre de olho no preço do dólar, porque o respirador era importado. Cada vez que ele subia, a gente tinha de correr atrás de mais dinheiro - conta Plínio.
No dia 11 de outubro, a família recebeu os R$ 10,5 mil que faltavam para a compra do respirador. O valor foi doado por funcionários das Lojas Colombo, que organizaram rifas para juntar o dinheiro.
- Foi um alívio muito grande saber que poderíamos voltar para casa, ficarmos todos juntos de novo. O Adriano já estava estressado, não tinha mais nenhum problema e precisava ficar no hospital só por causa do respirador - lembra Laci.
Para acomodar os aparelhos e a cama hospitalar onde Adriano passa a maior parte do tempo, os Recktenwald precisaram readaptar a casa. Tudo, naturalmente, feito como muito sacrifício, mas também como muito carinho. Aos poucos, o jovem foi recuperando os movimentos da mão e reaprendeu a falar depois da traqueostomia para o acesso do respirador.
- Ajeitamos as portas e o quarto de modo que ele possa olhar para fora e também possa ver TV lá da cama - explica Laci.
No dia 16 de dezembro, Adriano finalmente voltou para casa. Em frente à pequena moradia pintada de laranja, centenas de amigos, parentes e vizinhos o aguardavam. Era o início de uma nova vida para toda a família, principalmente para Adriano e Laci, que tiveram de se acostumar a usar e a operar o novo respirador.
Rotina
Adriano precisou abandonar a escola na 3ª série do ensino fundamental. Até então, ele estudava em um pequeno colégio municipal, a pouco quilômetros de casa, à qual seguia diariamente com os irmãos em um ônibus oferecido pela prefeitura de Brochier.
Ao chegar, era recebido pela professora e conduzido até a sala de aula. A internação prolongada e a necessidade de estar atrelado ao respirador impediram que ele continuasse os estudos e concretizasse os planos de infância de se tornar médico. Rogério e Alexandre concluíram a 5ª série na escola da Nova Holanda e também pararam de estudar.
- Eles teriam de seguir até Brochier de ônibus e contar que alguém os levasse para a sala de aula. Mas ninguém quer compromisso de chegar mais cedo e sair mais tarde todo dia. O pessoal da colônia fazia isso por amizade. O pessoal da cidade não vai se responsabilizar por eles - diz Laci, com uma ponta de tristeza.
Para passar o tempo, os rapazes contam com a ajuda da internet. Adriano e Alexandre, por exemplo, são fãs de futebol, embora torçam para times diferentes: o primeiro é corintiano, o segundo, colorado. Além de acompanharem as notícias dos campos, cada um de uma forma diferente - Adriano usa o laptop na cama, sobre um banco criado por Laci, enquanto Alexandre tem uma mesinha com poltrona e mouse adaptado -, todos têm perfis nas redes sociais e cultivam muitos amigos.
- Mantenho o contato com as pessoas que estão longe e que nem sempre podem vir nos visitar - conta Adriano.
No início, a internet foi obtida gratuitamente por meio uma empresa de Brochier. Com o passar do tempo, o acordo foi desfeito.
- Tínhamos um dinheirinho guardado, mas resolvemos usá-lo para colocar a internet para eles. É a única distração que têm. Por eles, a gente faz o que for - explica Laci.
Como precisa sair para trabalhar na roça ou cuidar dos animais, a agricultora carrega sempre consigo um celular. Outro aparelho fica com o filho, no caso de ele ou os irmãos precisarem de algo.
- Volta e meia ela passa ali na porta e pergunta se está tudo bem - entrega Alexandre.
Pelo menos três vezes por dia, a mãe tira Adriano da cama, desconecta o respirador por alguns minutos (ele pode ficar até duas horas sem ele) e o coloca no colo.
- Ele tem o lugar cativo ali no sofá do canto - afirma Plínio, que é descendente de alemães e fala com um forte sotaque germânico.
Nova internação
Em setembro do ano passado, o aparelho comprado com a ajuda da comunidade e que serviu a Adriano durante 10 anos, estragou. Surgia um novo fantasma na vida dos Recktenwald. O jovem precisou voltar ao hospital, desta vez em Montenegro, até que houvesse um novo respirador disponível. Desta vez, porém, não foi preciso esperar.
A família entrou com um pedido para obter ajuda do Estado e conseguiu um novo equipamento em menos de uma semana. Uma vez por mês, um técnico vai até Nova Holanda verificar como está o funcionamento da máquina. Outra visita especial também é aguardada a cada ano que entra.
Anualmente, em janeiro, médicos e funcionários do Hospital Pompéia viajam até Nova Holanda para comemorar o aniversário do amigo. A pediatra Helen Zatti, que atendeu Adriano no Pompéia na época, faz questão de manter o contato com o antigo paciente. Foi ela que ajudou os Recktenwald na adaptação de volta para casa e também uma das organizadoras das excursões a Nova Holanda.
- Ele chegou ao Pompéia com uma infecção pulmonar grave. Mais tarde, precisou usar o respirador e, em função desse processo, acabei me aproximando dele e da família. Como a permanência deles foi bem longa, foi impossível a gente não se envolver, não se apegar, ter carinho. A gente luta junto e comemora a vitória de cada paciente que vai para casa. A gente se sente parte da história deles - revela a médica.
Helen também admira a maneira com que a família encara seus problemas:
- São pessoas que frente a uma dificuldade se mantêm sempre unidas, otimistas. É uma lição de vida para mim. No início, muita gente acreditava que eles não iam conseguir aprender a lidar com os aparelhos, mas aquela mãe mostrou que é preciso acreditar na capacidade das pessoas, mostrou o que uma mãe é capaz de fazer por um filho - afirma Helen.
Em função da dificuldade de locomoção, a família pouco sai de casa. Às vezes, com ajuda do filho Juliano, que trabalha em um supermercado em Brochier durante a semana, passeiam por algumas horas ou vão visitar os parentes que moram nas proximidades.
- Não posso reclamar da vida. Dentro das nossas limitações, temos uma vida boa. Uma vez me aconselharam a escrever para um programa de TV, para pedir para arrumar a nossa casa, mas eu disse que não precisava. Acho que tem gente que merece muito mais do que nós - analisa Laci.
Para ela, a verdadeira riqueza está em ver os animais crescendo fortes, a lavoura produzindo o alimento que vai para a mesa e principalmente, em ver a família unida e com saúde.
A SÍNDROME DE MÓRQUIO
:: Afeta uma pessoa a cada 40 mil nascidos vivos, acometendo ambos os sexos igualmente. É uma doença genética rara, grave e incurável, que impede o crescimento da coluna quando a criança tem entre três e oito anos. Afeta todo o esqueleto, deteriorando a mobilidade. As crianças geralmente tem o desenvolvimento cerebral normal.
:: Entre os principais sintomas estão coluna acentuada, problemas pulmonares, pescoço e tronco curtos, articulações frouxas, principalmente punhos, dentes espaçados, com esmalte fino e acinzentado, perda de audição. Ocasionalmente, o portador pode apresentar deficiência mental ou glaucoma.
:: O nome da síndrome foi dado em homenagem ao médico uruguaio que descobriu a doença, em 1929, ao descrever uma família com quatro crianças afetadas.
Em Brochier
Saiba como está a vida de Adriano Recktenwald, 11 anos depois de ter sido internado no Hospital Pompéia
Portador de uma doença genética rara, o jovem conseguiu um respirador a partir de uma campanha da RBS TV, do Pioneiro e das rádios da cidade lançada em agosto de 2002
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