É com o carinho e paciência de um pai que Francisco Soares Ferrer, 55 anos, conduz a administração do Hospital Pompéia há mais de 20 anos. Unanimidade entre os que trabalham, entre quem já foi atendido ou mesmo quem vê a instituição do lado de fora, Ferrer foi o grande maestro da virada de jogo do hospital no início dos anos 1990. De uma instituição à beira da falência, esse gaúcho de São Gabriel, conseguiu colocar o Pompéia entre os maiores hospitais filantrópicos do Estado, referência em atendimento de alta complexidade para uma população de mais de um milhão de habitantes na Serra.
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Determinação, persistência e entendimento de que a causa é o que prevalece, afirma, foram os balizadores do seu trabalho desde que chegou ao Pompéia, em novembro de 1989, trazido pela Sociedade São Camilo, organização que assumiu a administração do hospital na época.
- Deixei a minha família em Novo Hamburgo, onde eu trabalhava, e segui para Caxias para atuar como assistente do administrador. O hospital estava numa situação muito difícil. O administrador era de São Paulo e não conseguiu se adaptar à realidade da cidade, estranhou a cultura do gaúcho, enfim, não se adaptou. A primeira coisa que registrei na minha identificação com o hospital foi o fato de ter morado dentro do hospital. Fiquei no quarto 301, onde é a maternidade, por cerca de dois meses - lembra.
Esse mergulho na rotina do hospital permitiu que Ferrer conhecesse bem de perto o tamanho do desafio que tinha pela frente.
- Não havia a estrutura de saúde pública que temos hoje, unidades de saúde, pronto-atendimento 24 horas. Consultas, atendimento de urgência, era tudo o pronto-socorro do Pompéia que fazia. A pediatria era toda aqui, atendíamos em torno de 250, 300 crianças por dia. Era uma estupidez aquilo, uma demanda absurda, os profissionais médicos não dando conta, a imagem do Pompéia quanto ao atendimento era a pior possível, havia lentidão no atendimento, uma demora incalculável, as pessoas saíam insatisfeitas, a imprensa a todo momento noticiavam as reclamações, denúncias de omissão, negligência, era algo brutal - recorda.
Nesse período de adaptação ao Pompéia e a Caxias, Ferrer conta que uma noite recebeu um sinal de que deveria ficar aqui, mesmo diante de uma tarefa aparentemente impossível:
- Era dezembro, já fazia um mês que estava aqui. De noite, depois de jantar, passei pelo pronto-socorro, lotado, e sai para caminhar pela Júlio (de Castilhos). Lembro que respirei um ar tão bom naquele dia, era uma noite agradável. Olhei para o hospital, ele estava com aparência muito ruim, sem pintura e eu pensei: "Eu vou ficar, o meu lugar é aqui." Vi que o desafio era enorme, mas essa é uma cidade do trabalho, de economia forte, e percebi que um trabalho de aproximação com essa comunidade faria com que esse hospital pudesse se reerguer.
O principal gargalo do Pompéia na época em que Ferrer chegou era o endividamento. Conforme ele recorda, as dívidas chegavam a oito vezes o valor do faturamento mensal. Não é preciso ser contador para entender que a situação era grave. Com a vinda de Ferrer para Caxias, o antigo administrador deixando o cargo por não suportar a pressão. Foi aí que ele colocou em prática um plano que vinha sendo gestado há muito tempo: colocar as finanças em dia, mudar o perfil assistencial do hospital e resgatar sua imagem perante a comunidade. O prazo que ele mesmo havia se dado para encontrar os primeiros resultados era de seis anos. Nesse tempo, porém, confessa Ferrer, não foram poucas as vezes em que ele teve vontade de largar tudo frente às dificuldades. O fato de entender a missão do hospital, as injustiças que eram cometidas contra quem só fazia atender e era criticado, defende Ferrer, lhe mantiveram no timão do navio. O primeiro passo, revela, foi começar a pagar as contas.
- Naquele novembro, chegou o quinto dia útil do mês, tínhamos a folha de pagamento para cumprir e não havia dinheiro. Fui ao banco, conheci o gerente e fiz um apelo para que eles liberassem um empréstimo para o hospital, para pagar a folha e tal, e a coisa aconteceu e foi avançando devagarinho - recorda.
Para reequilibrar as finanças, Ferrer negociou uma moratória para as dívidas e prometeu aos credores mais importantes passar a pagar dali para frente o que fosse negociado.
- Estabelecemos um pacto de confiança com os fornecedores para suprir materiais de consumo. Como a maioria concordou, a situação tomou outra feição, permitiu um fluxo financeiro no hospital. Mas tivemos de bater em muitas portas, fazer um enorme sacrifício pagar tudo o que devíamos.
Sobrecarregado com pacientes que não encontravam outro lugar para receber atendimento de graça, o administrador começou a planejar uma mudança na imagem do hospital associada ao perfil assistencial.
- Não estava nele só essa resposta para os problemas de saúde da população. E envolvemos o município nessa discussão. Era humanamente impossível o Pompéia ser o único a prestar essa assistência recebendo os parcos recursos do SUS que recebe. A gente criou um projeto que comtemplava essa virada que não seria no curto prazo, mas talvez no médio. E o meu prazo eram aqueles seis anos. Era o tempo que eu tinha me dado para rearticular. Na época, o Pompéia atendia cerca de 88% dos pacientes pelo SUS e a legislação facultava 60%. Então vimos que havia um percentual que podemos trabalhar - afirma.
No primeiro contato com o então prefeito Mansueto Serafin Filho, foi montada uma parceria para a criação de um pronto-atendimento. A ideia era reduzir as longas filas na porta do hospital. O espaço funcionou dois anos na Rua Pinheiro Machado, nos fundos da sede da atual 5ª Coordenadoria de Saúde, por sistema de comodato, com o hospital cedendo mão de obra e o município recursos.
- E aí começou a diminuir a pressão sobre a porta - conta Ferrer.
Com novos espaços de atendimento público surgindo aqui e ali por iniciativa do município, o hospital começou a se levantar aos poucos. Programas para divulgar informações de saúde pública, prevenção de problemas simples como piolhos, sarna e verminose foram levados para a periferia e para as escolas no projeto Pompéia vai aos bairros. Estava lançada a semente para o hospital retomar os laços com a comunidade, trabalho que começou lá no longínquo 1913 com a Associação das Damas de Caridade.
- Foi preciso muito diálogo, muita transparencia, muita reunião. A partir desses cinco anos, as coisas ficaram menos nebulosas e pudemos começar a projetar um hospital com um novo perfil. Se a imagem não era tão boa, pelo menos não era ruim, as contas estavam mais equilibradas. Foi então que a São Camilo decidiu deixar a administração do Pompéia e me convidaram para coordenar diretores de 25 hospitais do Norte e Nordeste. Confesso que a palavra de dom Paulo Moretto foi decisiva. Ele me disse: "não abro mão da tua presença no hospital." E foi assim, diante desse vínculo tão grande que eu havia criado que decidi, mais uma vez, ficar no Pompéia. Naqueles cinco anos aprendi a conhecer a causa disso aqui, essa missão de zelar pela vida, que nasce com o voluntariado.
Novos desafios surgiram a partir de 1996, quando o Pompeia passou a caminhar sozinho.
- Outro momento extremamente difícil foi quando o então prefeito Pepe Vargas assumiu. Na época, os hospitais que atendiam o SUS se descredenciaram, empurrando de novo toda aquela demanda para o Pompéia. Pensei que todos aqueles 10 anos de trabalho estivesse perdidos. Mas ali começou uma nova relação com o município, que começou a nos repassar uma verba mensal para ajudar nas despesas. Somente depois da municipalização, da criação do Hospital Geral e de novas UBSs é que as coisas melhoraram - conta Ferrer.
Assim que conseguiu ganhar fôlego, o hospital passou a pensar, lenta e gradualmente, em crescer. Começou por conquistar serviços próprios de diagnóstico, que ajudaram a trazer recursos, cumulando com serviços como a hemodiálise, o Instituto do Câncer, a tomografia e a ressonância magnética, e o moderno PET/CT, que permite diagnóstico precoce de câncer.
- Aprendi que administrar um hospital é uma arte. Não podemos ficar presos a decisões meramente técnicas. É preciso entender o funcionamento de uma UTI, as condições dos pacientes, ter contato próximo com os funcionários. E mais do que tudo, tratar com respeito e carinho o paciente, a vida que está em nossas mãos. Trabalhamos para não tornar o paciente mais um a ser atendido. Sempre digo aos funcionários que eles representam esse instituição e que digam com orgulho que trabalham aqui. Esse hospital tem uma credibilidade, as pessoas se identificam com ele, ajudam. E ninguém ajuda sem acreditar - afirma.
E por ter enfrentado tantos problemas em 24 anos de Pompéia, Ferrer revela que prepara, sim, um sucessor. Dentro de algum tempo quer ter mais tempo para se dedicar à família ou embarcar em novas oportunidades de conhecimento.
- Tenho em mento sempre um ensinamento do meu pai: "tenha sempre contigo o poder de renúncia. Hoje tu estás, amanhã, não estás. Qualquer gestor tem de ter isso me mente, tem de preparar um substituto, precisa saber a hora certa de sair, seja por limitações da idade ou saúde. Não importa que tenho o perfil diferente do meu. O que importa é que ele saiba dar continuidade a esse projeto fantástico que é o Pompéia.
É com uma frase atribuída a Santo Antônio, do qual é devoto, que Ferrer resume sua passagem pelo hospital: "É viva a palavra quando a obra fala por si."
Desafio da uma vida
Francisco Ferrer foi o responsável por reerguer o Pompéia, em Caxias, e transformá-lo em um dos maiores hospitais filantrópicos do Estado
Ele é administrador da instituição de saúde há mais de 20 anos
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