Rosmari Demarchi Guertler, 50 anos, casou-se em 1986. Tudo seguia bem até que, cinco anos depois, ela e o marido, Paulo Guertler, 50, resolveram ter um filho. Foi o início de um longo período de luta pela vida - que se estende até hoje - e que culminou com a realização de seis transplantes, dois deles no Hospital Pompéia, onde ainda hoje ela se trata com especialistas pelo menos uma vez por mês.
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para os 100 anos do Hospital Pompéia
- Eu não engravidei de fato. Quando fiz os exames, o médico constatou que não havia feto, apenas uma bolsa no útero. Então, foi preciso fazer uma curetagem. Uns 15 dias depois, começaram os problemas. Tive dores terríveis nas articulações e fui atrás de médicos para ver o que era. Inicialmente, diagnosticaram o meu problema como artrite reumatóide e reumatismo. Fiquei um ano tratando. Ia para o hospital, ficava dois meses lá, vinha para casa, ficava dois dias, voltava para o hospital, ficava mais 10, 15 dias e assim foi indo. Sentia muita dor, não tinha força de pegar um papel ou para levantar o lençol da cama - conta Rosmari.
Cansada do tratamento que não surtia resultado, ela procurou um especialista em Porto Alegre.
- Eu baixei hospital, fizemos exames para saber o que estava acontecendo comigo. Fiz tratamentos com corticoide na veia, quatro horas por dia... Foi aí que o especialista descobriu o que eu tinha: lúpus erimatoso sistêmico, a forma mais grave da doença. Hoje, alguns dos meus médicos acreditam que eu já tinha lúpus e que ele despertou depois da gravidez - conta Rosmari.
O lúpus é uma doença inflamatória em que o próprio sistema imunológico (células de defesa) ataca órgãos e tecidos sadios do corpo, como pele, pulmão, coração, articulações, vasos sanguíneos, sistema nervoso, células do corpo e rins, entre outros. No caso de Rosmari, o pulmão, as articulações e o coração foram o primeiros atingidos.
- Eu sentia tanta dor nas articulações que me atirava no chão de desespero. Eu andava toda enfaixada como se fosse uma múmia por causa dessas dores. Como a doença afetou bastante o meu coração, também fui submetida a um cateterismo - recorda.
Mas o pior ainda estava por vir. O lúpus atacou os rins de Rosi e a obrigou a fazer diálise. Foi o primeiro contato de Rosi com a equipe do Instituto de Nefrologia do Pompéia.
- Fiquei um ano fazendo diálise peritoneal. Era um processo bem delicado, que exigia o máximo de cuidado com a higiene. Em função da minha saúde ser delicada, a diálise atacou a minha vesícula, e tive de tirá-la. Tive uma infecção muito grande e fiquei mais de 30 dias internada. Nas tantas vezes em que fiquei hospitalizada, várias vezes os médicos chamaram a minha família e avisaram que eu não passava daquela noite. Mas eu sou forte e estou aí, né... - orgulha-se Rosmari.
Em função do delicado estado de saúde, surgiu a chance de fazer um transplante usando um rim da mãe de Rosi, dona Anita. Os exames mostraram que o órgão era compatível e a cirurgia foi realizada. Mas como nada na vida da paciente era simples, o rim rejeitou, e ela obrigou-se a fazer hemodiálise três vezes por semana.
- A minha mãe ficou quatro dias internada após o transplante e saiu bem. E eu fiquei quatro meses no hospital. Entrei direto para as máquinas (de hemodiálise) e para a lista de espera. E também não foi fácil. Eu não tinha acesso às veias e foi preciso tirar um pedaço da safena da perna para fazer a fístula no braço. E por ter mexido na artéria da perna, ainda tive trombose - lembra Rosi.
Enquanto esperava novo doador de rim, a paciente começou a ter problemas nos olhos. Teve úlcera e herpes no olho direito, o único em que ela enxergava perfeitamente, já que tinha perdido parte da visão no olho esquerdo ainda criança.
- Resolvi transplantar o olho esquerdo. Fiquei três meses com a córnea e ela rejeitou. Foi outro período muito difícil para mim. Fiz diversos procedimentos dolorosos no globo ocular, sem contar a cegueira. Sabe o que é tu acordar um dia e não ver nada? Ver só um mundo branco? Fiz três transplantes no olho esquerdo e um no olho direito, o último em outubro de 2012. Graças a Deus, hoje eu enxergo bem - conta.
O segundo transplante de rins aconteceu em 4 de novembro de 2010, sete anos depois que Rosmari entrou para a hemodiálise. Desta vez, o órgão, vindo de um doador cadáver, não rejeitou.
- Foi muito legal ver o pessoal lá do hospital todo junto no corredor antes de eu ir para o bloco cirúrgico, torcendo por mim, rezando, fazendo pensamento positivo. Tem uma enfermeira que brincou comigo dizendo que assim que eu fizesse o segundo transplante e desse tudo certo, eles iriam soltar foguete da janela do meu quarto - diz, rindo.
Além do órgão ter sido perfeitamente compatível, Rosmari precisou (e ainda precisa) tomar grande quantidade de medicamentos. Imunossupressores, anti-inflamatórios, antivirais...
- Eu cheguei a tomar 32 comprimidos por dia. Hoje, está mais tranquilo, são só uns sete ou oito, além dos colírios e pomadas para os olhos - brinca.
Há cerca de sete anos, o lúpus de Rosmari está estabilizado, o que tem mantido ela afastada dos hospitais.
- Acho que eu consegui dar a volta, né? Depois de perder o cabelo todo três vezes por causa da medicação forte, de ter preparado o meu jazigo com flores e tudo para me sepultarem no dia seguinte, depois de tantos médicos e meses e meses de internação, só posso agradecer a Deus. Nem tenho mais o que pedir a ele... - afirma.
Apesar de ter enfrentado tantas provações em 21 anos de batalha contra o lúpus, Rosmari diz que é feliz do seu jeito.
- Não é aquela felicidade assim, que tu tem uma vida tranquila, que pode ir aqui, pode ir ali. Eu tenho de dosar os meus limites, a gente não pode exagerar. Mas a gente leva a vida como dá. Hoje, eu chego lá no hospital e as gurias dizem: "ih, quem te viu, quem te vê. Nem parece a mesma pessoa". Rosi acredita que o segredo para vencer a batalha contra a doença foi aprender a não ter autopiedade:
- Eu sempre tentei levar a vida como se ela fosse normal, com dor ou sem dor. Teve uma época que eu me entreguei, me joguei na cama. Andei muito deprimida, cheguei a pedir a Deus que me levasse quando vi que estava todo mundo em volta sofrendo. Mas depois eu parei para pensar, ouvi os conselhos da minha mãe, das minhas amigas, e pensei "chega de autopiedade. Se é assim que vai ser, vou encarar. Quando eu estiver com dor , vou trabalhar, vou me mexer". E tudo o que eu fazia era gratificante. Me sentia bem quando eu ignorava a doença - revela.
Hoje, Rosi ainda tem compromissos quinzenais com médicos, exames, medicamentos e volta e meia precisa lidar com novos problemas de saúde. Mas nada que tire dela o bom humor e a vontade de viver. Deixando de lado a batalha diária para conquistar a saúde plena, comemorou bodas de prata no casamento com uma bonita festa. Entre os convidados, médicos, enfermeiros e antigos companheiros da hemodiálise no Pompéia.
- Os médicos disseram que a gente estava voltando a viver o que deixou de fazer lá no passado, por causa dos meus problemas de saúde - diz ela.
Ao lado de Paulo, companheiro que se manteve sempre firme ao seu lado, Rosmari dedica seu tempo a cuidar da casa e do poodle Nick, 11 anos.
- Não pudemos ter filhos, então ele é a criança da casa. Onde a gente vai, ele vai junto. Se o Nick, não for, não tem passeio. Ele é a nossa vida - resume.
VOCÊ SABIA?
Cateterismo: procedimento em que o interior do coração é acessado por meio de um tubo longo, fino e flexível, chamado cateter, colocado por um vaso sanguíneo periférico no braço, coxa ou pescoço. Tem como objetivo corrigir problemas em veias e artérias, como obstruções. Algumas vezes, um pigmento especial é colocado no cateter para fazer com que o interior do coração e os vasos sanguíneos apareçam no raio-x.
Diálise peritoneal: esse tipo de diálise aproveita a membrana peritoneal que reveste a cavidade abdominal do corpo para filtrar o sangue. Para realizar a diálise peritoneal, é introduzido um catéter dentro da cavidade abdominal e, através dele, passa uma solução aquosa. A solução permanece por um período necessário para que se realizem as trocas. Cada vez que uma solução nova é colocada dentro do abdômen e entra em contato com o peritônio, ele passa para a solução todos os tóxicos que devem ser retirados do organismo, realizando a função de filtração, equivalente ao rim. Para obter o resultado de um rim normal trabalhando durante quatro horas, são necessárias 24 horas de diálise peritoneal ou 4 horas de hemodiálise.
Fístula: a fístula arteriovenosa é uma conexão criada cirurgicamente entre uma artéria e uma veia do braço, com o propósito de ser empregada na hemodiálise. É nesse ponto que as agulhas retiram o sangue que vai ser dialisado na máquina e por onde ele é devolvido, já filtrado, ao corpo do paciente.
Imunossupressor: o sistema imunológico humano reconhece, defende e protege o organismo contra infecções e rejeitam tudo o que é estranho, o órgão transplantado é visto pelo sistema imune como algo estranho não pertencente ao "seu organismo". Por isso o uso dos imunossupressores irá ajudar a "enfraquecer" o sistema imunológico para que este não rejeite o órgão.
Luta pela vida
100 anos do Pompéia: Rosmari Demarchi Guertler fez dois transplantes no hospital
Ela foi diagnosticada com lúpus
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