A jornalista Carine Verza, 34 anos, é o que se pode chamar de guerreira. Aprendeu a lutar contra o diabetes, chegou a tomar 26 tipos de remédios por dia, enfrentou três cirurgias nos olhos, hemodiálise, foi submetida a um transplante duplo de rins e pâncreas, precisou tratar uma pneumonia e passar por mais duas cirurgias de risco poucos dias após o transplante e encarou longos 40 dias na UTI do Hospital Pompéia, de onde saiu 16 quilos mais magra e pronta para dar adeus ao período mais turbulento da vida.
- O pessoal do hospital costuma me chamar todos os anos, durante a semana de transplantes, para falar um pouco sobre a minha experiência. Eu conto com entusiasmo tudo o que passei, porque sei que, além do sofrimento, há uma história de vitória por trás de tudo isso - afirma Carine, a segunda transplantada dupla de órgãos do Pompéia e a única que permanece viva e saudável após o procedimento.
A primeira transplantada, Odila Scopel Catuzzo, morreu pouco tempo depois do transplante, vítima de problemas respiratórios. O diabetes, detectado aos oito anos e provavelmente desenvolvido a partir de um trauma emocional - Carine foi atacada por um cachorro aos sete - , foi o grande causador dos problemas de saúde enfrentados pela jornalista.
- Não tenho nenhum parente com diabetes. Foi muito difícil para mim entender que precisava mudar a alimentação de um dia para o outro e passar a fazer insulina e picadas no dedo para conferir os níveis de glicose diariamente. As pessoas me diziam "não pode comer doce porque isso faz mal, pode te matar". E eu pensava: "Como assim? Não me dói! Eu não sentia nada e comia escondido o que não devia. Assim, os níveis de glicose alteravam demais. Essa oscilação toda prejudicou os outros órgãos. Baixava hospital em coma todos os anos até os 13. Fui levando e, aos 18 anos, comecei a ter problemas na visão - revela Carine.
Até completar 21 anos, a jornalista operou catarata nos dois olhos e fez um procedimento chamado vitrectomia, a troca de líquido no olho esquerdo. Quando a visão estabilizou, os rins começaram a falhar. Inchaços inexplicáveis apareceram nos tornozelos.
- Na primeira consulta com o nefrologista, ele já me levou para conhecer a sala de hemodiálise. Foi um choque. Eu pensei: "vou ter de fazer isso?" Foi assustador ver aquela gente ligada nas máquinas, aquele sangue girando... - recorda.
Quando descobriu o problema renal, Carine já estava com um rim totalmente parado.
- Esse é o grande problema do rim. Quando ele vai parando, não tem como fazer ele voltar a funcionar normalmente. O que dá é para prolongar a vida dele, mas não é possível paralisar o problema que já começou - afirma.
O bicho-papão da hemodiálise
Depois de passar por vários tratamentos com especialistas, Carine chegou às mãos do nefrologista Osvaldo von Eye, do Pompéia. Com medicação e cuidados, a jornalista consegui postergar por mais um ano o início da hemodiálise.
- Eu me negava a fazer. Dizia que preferia morrer. Então chegou um dia que ele (von Eye) me disse que não tinha mais como continuar sem a diálise. Eu passava mais tempo em casa do que trabalhando. Me levantava tão cansada como quando deitava. Eu não estava vivendo, eu estava sobrevivendo - conta.
Assim que passou a fazer a hemodiálise, primeiro na clínica do nefrologista e pouco depois no Pompéia, Carine foi inscrita na fila de transplantes pelo próprio von Eye. A função renal de Carine ficou tão crítica que entrou em queda livre. Quando as diálises começaram, o único rim que funcionava operava com apenas 16% de sua capacidade. No dia 8 de maio de 2007, quando preparava uma festa com as amigas para comemorar a mudança para o apartamento com o noivo, Carine teve um desmaio.
- Coincidentemente, as primeiras pessoas a chegar na minha casa foram as enfermeiras do setor de hemodiálise do Pompéia, que eu havia convidado para a festa. Me deram os primeiros socorros e fui levada ao hospital pelo Samu. Fiquei cinco dias em coma. Naquele momento, ou eu transplantava logo ou não tinha mais o que fazer.
À essa altura, a relação com os nefrologistas Osvaldo von Eye e Luciana Leonardelli já havia ultrapassado a fronteira médico-paciente:
- Eles são o meu pai e a minha mãe lá dentro do Pompéia. Depois de tanta coisa que a gente passou junto, hoje temos uma amizade muito grande. Eles têm carinho, basta eu ligar para que me atendam logo, querendo saber como estou - revela.
Às 6h do dia 13 de junho, o telefone da casa de Carine tocou. Irritada pelo sono interrompido, ouviu a voz de von Eye séria do outro lado:
- Carine, o Nertan (Tefili, cirurgião) foi a Santa Maria.
- E?
- E? E que ele foi buscar os teus órgãos!
Era a primeira chance de Carine realizar o transplante. Depois de enfrentar uma maratona de medicação, hemodiálise e nove horas de espera, o procedimento não pôde ser realizado.
- Algo me dizia que o transplante não ia acontecer. Aí, lá pelas 21h, o Osvaldo apareceu e, cheio de dedos, me disse: "olha, o transplante não vai acontecer". Essa demora foi porque os médicos estavam tentando recuperar o pâncreas. No transporte de Santa Maria para cá, uma artéria entupiu e estavam tentando desentupir. Eles conseguiram, mas eu estava sensibilizada, debilitada, e acharam melhor não arriscar com um órgão que podia dar problema. Eu só consegui dizer para ele "tudo bem".
A espera pelo transplante definitivo chegou ao fim na noite do dia 11 de julho. Foi Osvaldo von Eye quem ligou novamente:
- "Surgiu um doador para ti aqui do Pompéia. Tu quer transplantar? ", ele disse. "Desta vez, sim", respondi. "Então te espero no hospital às 6h", me ordenou. Eu estava tranquila, mas minha família estava em pânico. Parecia que nem era comigo.
A cirurgia e a recuperação
O transplante de Carine começou às 11h do dia 12 de julho e só foi encerrado à 1h do dia 13. Acompanharam o procedimento 20 médicos, chefiados pelo cirurgião Nertan Tefili, além da equipe de enfermeiros e demais profissionais.
- A minha sorte é que os médicos que cuidaram de mim são especiais. Falem mal do meu pai e da minha mãe, mas não falem mal do hospital Pompéia nem dos médicos de lá. Foi um tratamento emocionante. Quando me despedi da minha família e segui para o bloco cirúrgico, foi muito comovente ver o carinho de todos. Deitada na maca, os enfermeiros passavam a mão em mim e me desejavam boa sorte. Tu deixa a tua família lá fora e ganha outra lá dentro - revela a jornalista.
O transplante em si, conta Carine, correu bem. Os órgãos implantados não rejeitaram, e a recuperação ia perfeita. Ao deixar o isolamento na UTI e seguir para o quarto, três dias depois, a paciente pegou uma pneumonia. Foi preciso deixar que o corpo curasse a doença por si só, já que os antibióticos afetariam a medicação antirrejeição para os rins e o pâncreas recém-implantados.
Controlada a pneumonia, de volta à UTI, Carine precisou voltar ao bloco cirúrgico. Os médicos queriam descobrir o motivo de um inchaço na barriga e de uma forte anemia. Quando abriram o abdome da jornalista, os especialistas perceberam uma enorme hemorragia em uma veia do pâncreas. O sangue jorrava direto para dentro da cavidade abdominal. De novo, Carine saiu com vida do bloco e rumou para a UTI para se recuperar.
- Eu melhorei por alguns três ou quatro dias, mas a minha barriga voltou a inchar. Ninguém sabia o que era. Em 40 dias, chamaram a minha família quatro vezes dizendo que não acordaria no outro dia. As minhas chances de sobreviver eram mínimas. Aí, o Osvaldo e o Nertan entraram na incubadora e conversaram comigo. Eles disseram que seria preciso operar de novo, mas que era muito arriscado e decisão seria minha. Pela minha família, eu não teria feito. Mas pedi a opinião do Osvaldo e ele deu. Ele me disse: "É a tua chance de sair dessa". Então eu autorizei. Pensei: não nadei até agora para morrer na praia. Já me abriram duas vezes, vamos mais uma - recorda.
Desta vez, o cirurgião descobriu que o inchaço na barriga de Carine foi causado porque as paredes do intestino colaram por falta de uso.
- O doutor Nertan chegou a suspeitar que fosse isso. Quando viu que era, o medo era não ter como descolar. Se tivesse de cortar, a cicatrização ia ser muito demorada. O organismo não teria resistência para a cicatrização rápida. Ele analisou todos os 10 metros do intestino delgado e felizmente conseguiu descolar - conta a jornalista.
Mais uma vez, Carine saía do bloco cirúrgico viva e cheia de esperança.
Força para virar o jogo
Depois de superar duas cirurgias de emergência poucos dias depois de receber o rim e o pâncreas novo, Carine voltou para a UTI para se recuperar e poder finalmente voltar para casa. Sem nenhuma nova complicação, Carine simplesmente não reagia, e o estado de saúde da jovem, em vez de melhorar, piorava.
- Eu nunca cheguei a ficar em coma. Eu passava praticamente o tempo todo dormindo, em função dos remédios para dor. Acordava quando tinha dor. Aí, davam nova dose e eu tombava de novo. Me deixavam acordada nos momentos de visita. Teve um vez, na troca de plantão, quando os enfermeiros trocavam instruções, a porta do meu leito estava semiaberta e eu ouvi a enfermeira que estava passando plantão dizer: "esse é o caso mais grave da UTI". Aí, me caiu a ficha. Pensei: "Meu deus, se eu sou o caso mais grave daqui, é porque a coisa está feia. Entrei em desespero, pensei "estou morrendo". Aí, passei a aguentar um pouco a dor para entender o que estava acontecendo comigo e tentar ouvir alguma coisa.
Durante uma visita dos médicos que a assistiam, Carine fingiu estar dormindo e ouviu o diálogo entre seus médicos.
- Não tem mais o que fazer no caso dela - disse Nertan.
- Como assim? Como não tem mais o que fazer? Vamos te de fazer alguma coisa - afirmou Von Eye.
- Tudo o que podia foi feito. Não tem mais o que fazer. Está tudo bem, mas ela não está reagindo.
- Vamos levar de volta para o bloco?
- Ela não via aguentar. Se abrir, ela são sai do bloco.
Ao pé do leito da UTI, Carine revela que ouviu seu médico e amigo Osvaldo von Eye chorar, impotente diante da situação:
- Acho que nada acontece por acaso. Acho que era para eu ouvir aquilo mesmo. Dali em diante, eu me prometi: eu não vou morrer. Não sofri 20 anos com diabetes, não fiz hemodiálise, que eu sempre me neguei a fazer, não tomei 26 remédios por dia fora a insulina para morrer agora. Eu vou sair dessa.
Tomar ciência de sua própria fragilidade multiplicou as forças da jornalista. Uma recuperação inacreditável se iniciou a partir dali. Três dias depois, Carine deixava a UTI e seguia para o quarto. Mais dois dias, Carine voltava para casa, cheia de esperanças, pronta para recomeçar e ser feliz. Para viver plenamente.
Vitória
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