22 de maio de 1999. O agricultor Odir Morandi aproveitava a tarde para lavar o caminhão da propriedade, em Capela Serro Grande, no interior de Nova Pádua, usando um equipamento ligado a um trator. A poucos passos, sentado na soleira da porta, o filho Maico, de um ano e oito meses, assistia a cena. Em segundos, o menino caminha até a máquina. O casaquinho de lã que ele usava se enrosca no mancal (dispositivo sobre o qual se apoia um eixo girante, deslizante ou oscilante, e que lhe permite o movimento com um mínimo de atrito) do trator. Num tranco, a roupa é sugada pela peça e o braço direito da criança é decepado na altura do ombro.
30 de abril de 2013. Maico Morandi, 15 anos, sobe as escadas da casa dos pais, em Nova Pádua para encontrar a reportagem do Pioneiro. Os olhos azuis brilham e o sorriso deixa à mostra uma fileira de dente muito brancos. O jovem estende a mão direita, nos cumprimenta e mostra que os esforços do grupo de médicos que o atendeu naquele maio de 1999 valeu a pena. Apesar da dificuldade para executar alguns movimentos, o adolescente tem uma vida normal, trabalha, estuda, namora. Faz planos.
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para os 100 anos do Hospital Pompéia
O intervalo entre esses quase 14 anos na vida de Maico, porém, foi recheado de luta e desafios. Começou quando o pai, Odir, encontrou a criança caída junto ao trator, com a roupa ensanguentada e já em choque.
- Ele pegou o Maico nos braços, saiu como estava, descalço, e foi correndo pegar a caminhonete para ir ao hospital. O meu cunhado levou eles até Flores da Cunha, onde o pessoal já estava avisado. Na pressa do socorro, ele não viu que o bracinho do Maico havia ficado caído no chão - recorda a mãe, Nair Garibaldi Morandi, 44.
Em Flores da Cunha, o menino recebeu os primeiros socorros. Mas o caso era grave e cogitou-se levá-lo até Porto Alegre. Só que o braço havia sido esquecido na propriedade da família, a quase 20 quilômetros de distância de Flores. A saída foi trazê-lo ao Hospital Pompéia, em Caxias do Sul.
- O meu pai foi lá no trator meia hora depois e encontrou o braço no chão. Enrolamos em uma toalha e levamos até o hospital de Flores. Lá, o pessoal colocou ele no gelo e corremos para Caxias, para tentar reimplantar - recorda Nair, que também é mãe de Tatiana, 19.
O braço chegou ao Pompéia cerca de uma hora depois de Maico, que já estava no bloco cirúrgico, aguardando pelo cirurgião vascular Marcos Ruzzarin, o traumatologista Celso Lira e a cirurgiã pediatra Marília Ronchetti. Era a primeira cirurgia do tipo a ser realizada no hospital em 86 anos de existência.
- Foi num sábado à tarde, estava descansando na sala e o doutor Mário Fedrizzi, que estava de plantão naquele dia me avisou que havia chegado uma criança com o braço amputado. Só que quando fui ver o menino, pedi do braço e ele não tinha vindo. Quase uma hora depois, a família chegou com o membro e começamos com o procedimento de reimplante. Acho que a cirugia levou umas cerca de cinco horas. Foi preciso religar os vasos, ossos, nervos...Foi uma cirurgia muito difícil porque em crianças os vasos são pequenos, mais delicados - recorda Ruzzarin.
Enquanto a equipe médica se esforçava para reimplantar o bracinho do menino, a família se desesperava e pedia a Deus que poupasse a vida de Maico.
- A gente imaginou que ele não fosse sobreviver. Ele tinha um ano e pouco e o ferimento foi muito grave, atingiu bem no ombro dele. Mas mantivemos a fé e não perdemos a esperança. Nem quando ele estava em coma e disseram que ele só estava vivo por causa dos aparelhos - emociona-se a tia Clelia Morandi Giseria, 63.
Por quase dois meses, a família praticamente abandonou a vida na lavoura e mudou-se para a UTI pediátrica do Pompéia.
- Eu e meu marido nos revezávamos de noite. E tinha os tios que ajudavam durante o dia também. Foi um longo tempo em que a nossa vida praticamente parou - conta Nair.
De acordo com Maico, só foi possível religar dois nervos no braço, o que comprometeu a movimentação do membro. Além disso, foi preciso implantar cabos metálicos e placas no ombro e nos ossos do braço, para mantê-lo firme até que músculos e pele estivessem cicatrizados.
Quando a situação da criança já parecia perdida, uma tia de Maico foi a um centro espírita e teria recebido uma mensagem: que a família e os médicos não desistissem dele e que Maico daria um sinal no dia seguinte.
- A mensagem dizia que o Odir tinha de ir ao quarto às 21h e rezar, que no dia seguinte ele receberia um sinal. No outro dia, quando o Odir foi até lá, o Maico, que estava em coma até então, levantou a perna. Poucos dias depois, ele já foi para o quarto - conta Clelia.
Assim como ocorre até hoje, quando pacientes ficam internados por um longo período, a equipe médica, enfermeiros e técnicos se apegaram ao menino. No dia do aniversário de dois anos, em 17 de junho, Maico ganhou uma festinha com direito a bolo e balões. A amizade nunca foi esquecida. Na UTI pediátrica do Pompéia, ainda existem fotos do menino.
Entre as enfermeiras, lembranças alegres e saudade do pequeno paciente, quem não veem há quase uma década.
- Foi uma grande vitória. O menino correu um sério risco de infecção e de trombose no braço. Ele podia não sobreviver. Mas foi uma felicidade para todo mundo ver que tudo deu certo no final. Mesmo com o déficit de movimentos, mesmo que o braço tenho ficado feio, ele ajuda a pessoa com alguma coisa. É muito melhor do que uma prótese - acredita Ruzzarin.
Apesar do sucesso no reimplante do braço, Maico precisou conviver durante toda a infância com incômodas roupas de elástico, talas de mão, coletes, incontáveis sessões de fisioterapia e outras várias pequenas cirurgias, principalmente para enxerto de pele na dobra do braço. Aprendeu a escrever com a mão esquerda, e a se virar sozinho na hora de tomar banho e se vestir. A única dificuldade que persiste, diz o jovem, é para usar os talheres.
- Na época da escola, foi um pouco difícil. As crianças não entendem direito e ficam apontando. Mas ele sempre foi muito corajoso, sempre se defendeu das provocações - conta a mãe.
Hoje, Maico mora em Espumoso com os padrinhos e ajuda a administrar as duas fruteiras compradas por Odir há cerca de um ano. O agricultor planta uvas, pêssegos e revende a produção agrícola da região na Ceasa, em Porto Alegre. Estudante do 2º ano do ensino médico, o adolescente não sonha em cursar faculdade nem viajar para o Exterior. O seu mundo, garante, é a colônia, onde nasceu e quer tocar a vida:
- Quero voltar para cá e trabalhar igualzinho ao meu pai.
Imagem de junho de 1999 mostra o bebê Maico no Hospital Pompéia. Foto: Porthus Junior, Agência RBS