Diminuir a pegada de carbono e contribuir para a preservação do meio ambiente é um sonho que está cada vez mais próximo da realidade. Cada vez que andamos de carro, utilizamos energia elétrica ou térmica nas mais básicas atividades do dia a dia, deixamos um rastro de gases que se acumulam na atmosfera e contribuem para o aquecimento global e a destruição da camada de ozônio. No entanto, já existem alternativas para diminuir o impacto que deixamos no meio ambiente e que estão ao alcance de qualquer pessoa.
Uma alternativa que ganha espaço em empresas de variados tamanhos e segmentos, propriedades rurais e moradias é o biogás. Uma possibilidade de gerar energia elétrica, térmica e veicular a partir da mistura de gases, principalmente do gás metano e do dióxido de carbono, o famoso CO².
A professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) Suelen Paesi, que também é coordenadora do Fórum Sul Brasileiro de Biogás e Biometano, explica que a importância do biogás está, principalmente, na preocupação com o meio ambiente e na destinação correta dos resíduos.
— Por que o biogás é importante? São vários gases gerados, mas os dois principais são o carbônico e o metano, que se você purificar, pode usar direto no automóvel que já têm estrutura para gás natural veicular (GNV). Você está produzindo energia através do resíduo e isso é muito interessante — pontua.
A professora e pesquisadora explica que já existem exemplos de cidades que investem no biogás, como Toledo, no Paraná.
— Em Toledo, que tem mais suínos do que pessoas, toda a energia elétrica da cidade é gerada por resíduo dos suínos. Então, é um elemento que não podemos dispensar pela capacidade de gerar energia elétrica, calor ou energia veicular. Outro exemplo é na Holanda, onde o gás gerado a partir dos resíduos abastece as casas. Então, eles têm menos necessidade de importar gás de outros países. A gente tem que abrir a mente, olhar de forma diferente para os resíduos — provoca a professora Suelen.
Brasil tem capacidade de gerar mais energia verde
Apesar de muita gente pensar que o biogás só pode ser gerado por meio de resíduos de animais, ou seja, uma energia aparentemente mais voltada à produção rural e agrícola, a professora Suelen Paesi destaca que, no ambiente urbano, a geração de resíduos é muito grande e é onde mais existe volume para a produção desse tipo de energia.
— Aquele resíduo que está indo lá para o aterro sanitário deveria estar indo para uma produção de biogás que poderia abastecer os veículos que fazem transporte na cidade, por exemplo. Como eles não estão sendo utilizados, o metano vai diretamente para a atmosfera e é aí que está toda a importância ambiental. O metano faz uma poluição ambiental muito pior que o gás carbônico, ele é muito mais poluente — explica.
Além da geração de energia, o que sobra dos resíduos após a produção do biogás é um líquido muito valioso: o biofertilizante, um tipo de fertilizante orgânico que também atua como defensivo natural por ser meio de crescimento de bactérias benéficas.
O Brasil é o maior produtor de energia limpa do mundo, conforme a professora. O país produz 2 mil toneladas de biogás, atualmente, mas teria capacidade de produzir 84 mil toneladas.
— Nós poderíamos mostrar pro mundo que nós não somos queimadores de floresta, nós somos um país onde a biomassa pode servir para mudar a matriz energética que, hoje, usa combustível fóssil — destaca.
No Brasil, de acordo com o último levantamento do Centro Internacional de Energias Renováveis (CIBiogás), são 811 usinas de biogás, no Rio Grande do Sul (RS) são 38 e na Serra, duas usinas. No entanto, o RS é o 3º maior produtor de suínos do país, ou seja, haveria resíduos para que mais usinas sejam criadas.
Ainda de acordo com dados da CIBiogás, 80% da produção de energia com biogás vem da agricultura, seguida do saneamento e, por fim, da indústria.
Cidades podem economizar recursos públicos
Atualmente, em Caxias, os resíduos vão para o aterro sanitário Rincão das Flores, da Codeca. O aterro foi ampliado há cerca de dois anos, porque dava sinais de que a capacidade chegava ao limite. No entanto, uma alternativa para Caxias ou para qualquer cidade são as usinas de biogás. Caso o município tivesse a estrutura, o material orgânico seria decomposto e geraria o combustível verde.
— Os municípios estão muito interessados em produzir pirólise, que é a degradação térmica de qualquer material orgânico, ou seja, a queima desses resíduos, a destruição deles, porque é mais fácil queimar tudo junto do que separar os resíduos sólidos recicláveis e os orgânicos. No aterro, aqui em Caxias, os resíduos ficam lá emitindo metano e prejudicando o meio ambiente — afirma Suelen.
De acordo com a pesquisadora, em Caxias do Sul, seria possível produzir o biogás. Um exemplo prático e de sucesso é o estado do Rio de Janeiro, que, de acordo com levantamento da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás) em 2022, produziu 327 milhões de metros cúbicos de combustível por ano. O potencial de produção pode chegar aos 800 milhões de metros cúbicos por ano, segundo a associação.
— Claro que teria que se implantar um projeto onde a reciclagem seja especializada para fazer esse movimento aqui na cidade. Os municípios também podem produzir energia por meio das estações de tratamento de efluentes. Todas as nossas redes de esgoto vão pra uma estação de tratamento e lá existem micro-organismos que decompõem a matéria orgânica. O gás metano é jogado para o meio ambiente, mas ele poderia ser aproveitado por meio de usinas — explica a pesquisadora.
No município, já existe a tentativa de uma planta-piloto para geração de biogás. O projeto é da UCS, com coordenação dos professores Lademir Beal e Marcelo Godinho e será instalada na área do aterro sanitário Rincão das Flores. A planta integra o projeto para implantação de uma usina em escala industrial para atender 32 municípios da região. Quando estiver em operação, a unidade terá capacidade de tratamento de cinco toneladas de resíduos por dia.
A coordenação do projeto espera que a documentação para implantação da planta fique pronta em quatro meses, contando o prazo a partir de março deste ano, e seja enviada à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) para a obtenção da licença de instalação. No entanto, a construção ainda não tem recursos garantidos e nem prazo.
O projeto deve ser financiado via parceria público-privada (PPP), organizada pelo Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Sustentável da Serra Gaúcha (Cisga) por meio da Caixa Econômica Federal. Essa PPP será focada na criação de uma operação regionalizada para destinação final dos resíduos sólidos urbanos dos municípios que integram o consórcio. Ao todo, 20 cidades da Serra serão contempladas no processo. Atualmente, essas cidades produzem mais de mais de 600 toneladas de lixo por dia.
Além da planta-piloto em Caxias, o Programa de Mestrado Profissional em Engenharia Civil e Ambiental da UCS tem um projeto de pesquisa em parceria com a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), que está sendo desenvolvido no município de Cachoeira do Sul para geração de biogás por meio do tratamento de efluentes.
Setor promissor também na indústria
Uma possibilidade para a indústria, além da utilização da energia limpa, é a produção de suprimentos necessários para geração do biogás.
— A gente tem aqui a expertise pra produzir todos os suprimentos necessários, biorreatores, filtros, encanamentos, motogeradores e todos esses elementos. Com certeza, o empresariado caxiense e da Serra conseguiria agregar, mas não percebe ainda essa possibilidade — provoca a professora Suelen.
De acordo com o professor Lademir Beal, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, para que a indústria da região possa produzir e comercializar os equipamentos, é necessário investir, antes, em pesquisa e inovação. Segundo Beal, atualmente existem desde biorreatores de configuração simples e tecnologia aberta, até aqueles de tecnologia mais complexa e protegidos por patentes.
— A tecnologia envolvida na produção de biogás não se limita somente aos biorreatores. Motogeradores, sistema de purificação de biogás, sistema mais eficientes de alimentação dos reatores, equipamentos de monitoramento e programas supervisórios para o controle do processo também são importantíssimos para o sucesso de um empreendimento. Não se pode esquecer também dos materiais envolvidos, tanto na construção dos biorreatores como nas unidades auxiliares — aponta o professor ao falar sobre as possibilidades para a indústria.
Como ainda não existem, na região, empresas que produzem a tecnologia e equipamentos necessários para a geração de biogás, Beal destaca que a Serra Gaúcha tem um potencial enorme a ser explorado nesta área.
— A produção é possível e uma forma segura e eficiente para isso é a associação da indústria com a Universidade de Caxias do Sul para desenvolver sistemas e biorreatores competitivos — destaca Beal.
Fazenda em Farroupilha é pioneira
Há 15 anos, quando os proprietários da Fazenda Trevisan decidiram construir um galpão para confinar gado, o alto volume de resíduos gerados pelos animais trouxe a possibilidade de investir em biodigestores.
De acordo com um dos proprietários, Jean Carlos Trevisan, o problema era com que destino dar às fezes das vacas da fazenda, que produzem leites e iogurtes tipo A.
— A gente teve um problema muito grave que era uma concentração geográfica pequena e muito dejeto. O que fazer com o esterco das vacas? É um problema, né?! A gente tem que tratar de alguma forma. A gente foi atrás disso, na época. Eu não lembro o porquê foi escolhido o biodigestor, mas eu acredito que tenha sido porque demanda pouca mão de obra. Os biodigestores, no caso da área agrícola, recebem um volume constante e uma uniformidade na matéria a ser degradada. Não varia o tipo de fluente, é sempre dejeto bovino, todo dia a mesma quantidade. Então, o biodigestor se enquadra muito bem nisso — justifica Trevisan sobre a escolha.
O empreendedor diz que conheceu a tecnologia no colégio agrícola, que frequentou durante um ano. Ele conta que o equipamento na escola tinha cerca de dois metros de diâmetro, mas que a experiência foi válida para conhecer essa possibilidade. O tamanho dos biodigestores depende da quantidade de resíduos encaminhados.
— É combustível de graça, brilha os olhos de qualquer um — pontua.
Na fazenda,o biogás gera energia térmica para aquecer a água utilizada na limpeza dos tonéis do leite recém-ordenhado e de roupas na minilavanderia industrial da empresa. Cerca de 30% da energia elétrica da fazenda é gerada pelo biogás, o que proporciona uma economia de cerca de R$25 mil por mês. O processo não gera custos adicionais, pois não requer mão de obra.
— A gente recebe visitas de empresas que querem ver a nossa estrutura do biogerador para entender como funciona, já que fomos pioneiros nisso. Nós queremos ampliar os biodigestores na medida que a fazenda crescer— afirma.
Pequenos produtores podem investir no biogás
A primeira vez que o produtor André Guerra e a esposa Joanes Frosi Guerra ouviram falar em biogás foi na Expointer em setembro de 2022. A família, com propriedade rural em Cerro da Glória, no interior de Caxias do Sul, decidiu investir em um biodigestor em novembro do mesmo ano.
— Lá tinha um expositor, que estava junto do pessoal da Emater-RS. Mas, há muitos anos, eu já tinha visto um sistema parecido, mas era mais caseiro, ou experimental, que a Emater tinha. Eles tinham uma espécie de biodigestor, só que era feito com uma bombona, bem artesanal... — explica Guerra.
Com a estrutura instalada há pouco mais de cinco meses, o equipamento da família é abastecido, principalmente, com esterco das quatro vacas e dos quatro cachorros que possuem, além de restos de alimentos que iriam para o lixo orgânico. A unidade escolhida por André tem capacidade de gerar de duas a três horas de gás para cozinha diariamente.
— Nós colocamos cerca de 18 litros de esterco no biodigestor por dia, além do lixo da cozinha. A gente usa principalmente para cozinhar, vai direto para a boca do fogão — afirma o produtor.
No entanto, para os produtores, o maior benefício está no fertilizante que é gerado com o que sobra dos resíduos orgânicos. A família possui cerca de quatro hectares de parreirais, além de uma produção menor de bergamotas.
— A gente botou essa estrutura mais pelo adubo líquido que ele fornece. O adubo, pra nós, é mais caro do que o gás de cozinha, por exemplo. A gente usa na uva, colocamos na turbina do trator esse fertilizante — explica.
O equipamento é israelense e foi importado por meio de um representante comercial, conforme explica o produtor. Os custos para compra e instalação foram de cerca de R$ 13 mil.
Como aplicar o biogás no dia a dia
Quando se pensa em biogás, muitas pessoas imaginam que seja uma possibilidade apenas para grandes indústrias ou grandes produtores, mas qualquer pessoa pode instalar um biodigestor em casa.
A professora Suelen Paesi explica que as possibilidades são infinitas.
— A pessoa pode ter uma produção pequena, por exemplo... Ou um restaurante, até mesmo em um shopping... A pessoa pode usar o biogás pra fazer aquecimento do local, por exemplo. As grandes indústrias podem gerar energia elétrica — esclarece.
Para a pesquisadora, o uso do biogás no dia a dia beneficiaria a população de forma geral, tanto na economia de recursos financeiros quanto naturais e, claro, na diminuição da pegada de carbono.
— O dono de um restaurante, por exemplo, tem plena capacidade de emitir biogás. Os resíduos de um restaurante são perfeitos, porque eles já são separados. Então, se a pessoa tivesse um biorreator, ela poderia, por exemplo, usar o gás de cozinha a partir do metano. Ele serviria para aquecimento dos alimentos, no fogão, por exemplo, como um botijão de gás de cozinha — exemplifica Suelen.
As possibilidades para órgãos públicos são ainda maiores, de acordo com a professora. Além de ser uma energia mais limpa, o biogás ainda pode contribuir com a economia de recursos.
— O poder público pode gerar energia para iluminação pública, gás veicular para o transporte de resíduos, principalmente. O biogás ainda poderia ser usado pra aquecimento em prédios públicos, estufas da agroindústria, aviários e caldeiras, por exemplo — complementa.
Para os veículos, o uso do componente é ainda mais fácil. Quem já tem equipamento e estrutura para usar o Gás Natural Veicular (GNV) pode apenas utilizar o biogás no tanque já instalado no veículo.
— O biogás e o diesel são praticamente equivalentes em rendimento. Sem contar que o diesel está poluindo o meio ambiente e foi extraído do mar, com recursos infinitamente poluidores, enquanto que com o metano, a pessoa está diminuindo a poluição porque tira esse gás do meio ambiente — destaca Suelen.
Biogás também para educar
Para além da preservação do meio ambiente e da economia financeira, entidades como a Escola Família Agrícola da Serra Gaúcha (EfaSerra) usam o biogás com propósitos educacionais.
A instituição, que tem como objetivo promover a formação integral de jovens e o desenvolver consciência sobre o meio rural, conta com um biodigestor que é utilizado no aprendizado prático em disciplinas como biologia, química, física e até matemática, conforme explica o vice-diretor da EfaSerra, Marcelo Boff.
— A função não é suprir a necessidade de gás de cozinha, mas sim utilizar para objetivos educacionais. Nossa motivação foi pedagógica, para trabalhar com os estudantes em aula e conectar com os conteúdos da sala de aula — afirma.
Na escola, o biodigestor é utilizado há pouco mais de seis meses, sendo alimentado com restos de comida, cascas de frutas, ovos e até mesmo ossos de galinha. O aparelho gera cerca de uma a duas horas de biogás por dia, que é utilizado na cozinha da entidade para preparar as refeições dos alunos.
— Quando instalamos o biodigestor, os alunos ficam impressionados. Eles pediam o que era aquela estrutura e queriam saber como funcionava. Ficam impressionados que com os restos de comida que eles iam jogar fora, podem gerar gás para a cozinha — conta Boff.
Entenda como funciona o processo do biogás
Como funciona: os biodigestores são equipamentos que transformam resíduos orgânicos em gás e fertilizante. As sobras de alimentos — frutas, arroz, feijão, carne, gordura — são colocadas no equipamento. Na sequência, a matéria orgânica se decompõe em uma câmara de digestão submersa em água, o que deixa o ambiente anaeróbico (sem oxigênio). Isso permite que os microrganismos "quebrem" o material orgânico e o convertam em biogás por meio de quatro estágios de fermentação que ocorrem de maneira simultânea.
Como pode ser usado: pode ser aplicado na geração de energia elétrica, energia térmica e na produção de biometano, um biocombustível parecido com o gás natural.
Quem pode produzir: propriedades rurais, aterros sanitários e indústrias relacionadas à agropecuária. Também é possível produzir biogás com esgoto, resíduos vegetais e resíduos de alimentos.
Fertilizante: como o material orgânico se decompõe em um ambiente líquido, os nutrientes presentes nos resíduos se dissolvem na água, e criam um lodo rico em nutrientes. Esse material torna-se um fertilizante orgânico líquido que pode ser usado com finalidades de nutrição vegetal, como adubo de hortas, pomares e floreiras, por exemplo
Fórum Sul Brasileiro de Biogás e Biometano
O 5º Fórum Sul Brasileiro de Biogás e Biometano é visto como o maior evento sobre o segmento no sul do Brasil. A ideia é reunir, entre os dias 18 e 20 de abril, em Foz do Iguaçu (PR), especialistas para apontar soluções, fazer conexões, trazer novidades e proporcionar negócios, entre outras ações. A realização é do Centro Internacional de Energias Renováveis (CIBiogás), do Paraná, da Embrapa Suínos e Aves, de Santa Catarina, e da Universidade de Caxias do Sul (UCS). A organização, por usa vez, fica a cargo da Sociedade Brasileira dos Especialistas em Resíduos das Produções Agropecuária e Agroindustrial (Sbera).
Segundo a divulgação do evento, serão 12 horas de debate em 11 painéis. Haverá espaço para negócios, visitas técnicas e reuniões setoriais, além de atividades paralelas.
O primeiro painel, no dia 18 de abril, apresentará dados sobre o avanço do setor de biogás e biometano do Brasil. Os palestrantes e debatedores também falarão sobre as oportunidades e desafios para o mercado regional de biogás.
É esperada a participação de 650 pessoas ligadas à cadeia produtiva do biogás. As inscrições já estão encerradas. No ano passado, quando o Fórum foi realizado em Caxias do Sul, cerca de 350 participantes, de 14 Estados e outros quatro países, prestigiaram o evento.
Segundo a Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), o potencial de produção de biogás no Brasil é de 78,8 bilhões de Nm³ (unidade de vazão Normal Metro Cúbico por Hora). Atualmente, são produzidos 2,3 bilhões de Nm³, conforme Nota Técnica Panorama do Biogás no Brasil, realizada pelo Centro Internacional de Energias Renováveis (CIBiogás).