O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu o poema No meio do caminho, em 1924. No entanto, só foi publicado na Revista de Antropofagia, em 1928 e, dois anos depois, incluído no se livro de estreia, Alguma Poesia. A sobreposição de ideias versadas em uma aparente desordem repetitiva deixou muitos dos críticos, à época, meio desparafusados. Mas e o que isso tem lá a ver com economia caxiense, sobretudo na edição de uma reportagem que pretende mostrar como os pequenos negócios precisaram mais do que nunca reinventar-se para sobreviver? Primeiro, à poesia:
“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas”.
Se trocássemos a palavra pedra por pandemia, talvez ficasse mais fácil perceber que o grande obstáculo no nosso caminho, em 2020, foi a dita cuja. Diferentemente da pedra, ela não pode ser percebida. Fosse como uma pedra, poderíamos simplesmente removê-la do caminho, seja rolando ou dando uma bicuda, a depender do tamanho da pedra.
De forma sutil, por meio do jogo de palavras, Drummond reinventou a poética. Da mesma forma, narramos aqui três histórias de empreendimentos que precisaram se reinventar para não morrer. Assim como discorreu o poeta, as mulheres entrevistadas nessa reportagem nunca se esquecerão desse acontecimento, de haver uma pandemia no meio do caminho. E, apesar das “retinas tão fatigadas”, o olhar delas aponta para um futuro promissor, porque a vida e os negócios foram reinventados.
Dentro desse contexto de urgente reinvenção, de remodelação, de novos planos de negócios, de aceleração de lançamentos de produtos, os pequenos negócios têm sido protagonistas de uma retomada um tanto heroica e, talvez, por isso mesmo, poética até.
Desde maio, o Sebrae e a FSG têm realizado uma pesquisa frequente e abrangente para traçar um diagnóstico importante: “o impacto do coronavírus nos pequenos negócios”. A avaliação mais recente é a oitava edição, com dados coletados entre os dias 29 de setembro e 1º de outubro. No Rio Grande do Sul foram 396 respondentes.
Um dos pontos que ainda chama muito a atenção é a variação média de faturamento verificada nos dias da pesquisa, em comparação com uma semana do ano anterior. O índice ainda é negativo em 37%. Esse é um dado que revela ainda um cenário preocupante. Porque, desse universo que respondeu à pesquisa, 3% já fechou a empresa de vez e 13% interromperam temporariamente as atividades, sem programação de retorno.
A grande maioria, 66%, que segue em atividade, precisou mudar processos ou focos de negócio para se manter em atividade. E apenas 18% dizem estar funcionando da mesma forma que antes da crise.
Decorrente desse questionamento acima, apenas 10% dos respondentes disseram que aumentaram seu faturamento durante o mês de setembro de 2020, em relação ao mesmo mês do ano passado. Enquanto que, 13% permaneceram em igual faturamento. No entanto, a esmagadora maioria, de 75%, diz que o faturamento diminuiu no mesmo tempo comparativo. Quando perguntados quando essa situação vai mudar, os pequenos empreendedores gaúchos dizem que, para tudo voltar à “normalidade” será preciso um ano ainda.
A pesquisa se encerra com a seguinte pergunta: “Qual das seguintes frases representam melhor a situação que você vive agora?”. A resposta “Ainda tenho muitas dificuldades para manter meu negócio” foi escolhida por 44% dos respondentes.
No entanto, se forem somadas as três alternativas a seguir, todas elas com um pensamento mais positivo, parece haver esperança dentro os pequenos empresários. “O pior já passou”, foi a resposta de 20%, enquanto que “Estou animado com as novas oportunidades” sensibiliza 15% dos empreendedores. Mas 22% disseram que “Os desafios provocaram mudanças que foram valiosas para o meu negócio”.
Pesando em desafios que provocam mudanças é que o caderno +Serra, na última edição de 2020, revela como as empresárias Luiza Colombo Dutra, Franciele Freitas, Angela Fanton Ornaghi, Bruna Pieri dos Santos e Francine Gasparin reinventaram seus negócios, projetando 2021 com ainda mais esperança.
Boa leitura e feliz 2021, com muita saúde para tocar o barco com alegria, em meio aos desafios.
Empreendedorismo por necessidade
A evolução faz parte do DNA das empresas. Ou, pelo menos, deveria, porque dessa forma é que se rompem as barreiras apontando para a longevidade dos negócios. A empresária Luiza Colombo Dutra vive na pele a necessidade de se reinventar. Há 20 anos ela vem tocando uma empresa que tem passado por sucessivas transformações. Lá no início, atuavam como uma agência de publicidade. Há 5 anos, no entanto, o plano de negócio simplificou-se a ponto de ela formatar a Armazém Paper, focada em convites para casamento, bodas, festas de 15 anos e papelaria corporativa. Então veio a pandemia e bagunçou os planos todos.
– Estávamos bem animados para 2020, já tínhamos os meses de janeiro até abril com contratos fechados e uma boa perspectiva para o restante do ano. Como nosso mercado depende de eventos presenciais, nos primeiros 15 dias todos os que tínhamos convites por fazer foram cancelados ou transferidos. Nosso faturamento caiu quase a zero neste ano em relação a 2019, perdemos cerca de 90% – revela Luiza.
Esse choque pandêmico já fez com que a empresária riscasse do caderno a palavra contratação. Além disso, era preciso encontrar uma saída rápida e certeira, porque o estoque estava abarrotado de matéria prima, que ainda precisaria ser paga ao longo do ano. Quando a Páscoa despontava, cerca de um mês depois do início da crise, Luiza teve uma luz de revelação quase divina.
– Pensamos em fazer kits personalizados. Eu tinha estoque de matéria prima, então fizemos as caixas, e conversando com outras pessoas de pequenas empresas, um fazia alfajores, o outro biscoito, e outro ainda os molhos. Todos ganham, pouco, mas ganham. Porque, se ficássemos parados, seria desanimador – desabafa.
Depois da Páscoa, veio o Dia das Mães e, assim foi, até o Natal. Essa reinvenção acabou por ser também a maior lição que Luiza tira de 2020.
– Essa cadeia que criamos foi muito importante, porque todo mundo pôde vender um pouco. Quem mais sentiu a crise foram os pequenos negócios. Digo às pessoas que nos reinventarmos foi um “empreendedorismo por necessidade” – explica.
Luiza diz que o setor de eventos foi o primeiro a paralisar e será o úlimo a voltar à ativa e, mesmo assim, não recebeu nenhum incentivo ou subsídio para se manter de pé. Apesar disso, ela diz enxergar aprendizados mesmo em meio à crise.
– Conseguimos perceber vários nichos que não explorávamos. É como se antecipássemos em cinco anos a nossa evolução. Porque, se antes planejávamos a longo prazo, agora tivemos de acelerar as decisões, fazendo ajustes pelo caminho.
Oportunidades apesar da crise
Todo empreendedor sabe da coragem e do sacrifício que é conduzir uma empresa. Dentre os tantos pontos de virada, um dos mais importantes é aquele em que os sócios ousam ampliar, porque já se sentem seguros a ponto de vislumbrar atender a mais clientes, com a mesma qualidade. Ainda em 2019, as fisioterapeutas e coaching de emagrecimento Bruna Pieri dos Santos e Francine Gasparin projetavam completar seis anos da Belcorpus, em 2020, justamente dando um novo passo na ampliação dos serviços. Mas, como tem sido recorrente em todas as narrativas neste ano, tinha um pandemia no meio do caminho.
– Como somos fisioterapeutas, começamos a nos dedicar mais para entender de administração. Começamos este ano a pensar na reestruturação da empresa, na sua ampliação e em como nos divulgarmos melhor, por meio das redes sociais. Aí, veio a pandemia – explica Francine.
De bate-pronto, em função de não ocorrerem mais atendimentos presenciais, a Belcorpus perdeu cerca de 40% de faturamento.
– A pandemia mudou a nossa realidade e passamos a oferecer nossos tratamentos de emagrecimento na versão online, o que foi um marco pra nós. Nossa surpresa foi que, mesmo em um atendimento online, não importa a distância, se o paciente tiver força de vontade, ele consegue. E, a partir desse serviço online, pudemos atender pacientes de outros Estados e até de fora do Brasil – revela Francine.
Esse relato é para quem não consegue enxergar que crises geram oportunidades. Bruna vai ainda além e abre o coração, revelando que um empreendedor arrisca-se porque, da sua forma, pretende ser um agente de transformação.
– Essa situação veio nos ensinar que não temos controle de nada. Nós acreditávamos que 2020 iria ser o ano de conquistar uma situação financeira mais estável, que tanto almejávamos. Tínhamos nos mudado para uma clínica nova, mais estruturada, mas, como não temos o controle de nada, tivemos de prestar atenção nas possibilidades ao nosso redor – ensina Bruna.
A reinvenção, defende Bruna, brotou de dentro delas para que fizesse efeito durante o acompanhamento dos pacientes, apesar da distância e da dita frieza dos contatos através de telas de computador, tablet ou telefone celular.
– Aprendi que podemos mudar a vida das pessoas, mesmo sem o contato físico, mas tocando em suas almas.
Para finalizar, de forma sintética, Bruna resume 2020 em uma frase:
– Foi um ano de muitas dificuldades, incertezas e medos, mas que fizeram a gente ter a certeza de que queremos ir mais longe, porque estamos com muitos projetos para 2021. Nos aguardem.
Ideias simples, mas efetivas
Empresas com pouco tempo de estrada sofrem mais com as crises, principalmente em um contexto ímpar como esse, com forte impacto na economia global. Franciele Freitas está no mercado há dois ano e recém havia estabelecido parceria com Angela Fanton Ornaghi, na criação da empresa FAduo Personal Organizer.
A lista de planos, incluindo a abertura de novos mercados, foi por água abaixo, por causa da pandemia.
– No nosso mercado é assim, se trabalha, ganha, se não trabalha, não ganha. Quando tivemos o primeiro lockdown em Caxias, entramos em surto. Como não poderíamos mais estar fazendo nossos serviços nas casas dos clientes, tivemos de devolver dinheiro de contratos já firmados. Não sabíamos o que fazer porque não tínhamos perspectiva de como sair dessa situação – relata a personal organizer Franciele.
A virada de mesa da FAduo, assim como nos demais exemplos citados pela reportagem, ocorreu a partir de uma nova interpretação da realidade. Porque, com as medidas restritivas, ficou inviável visitar os clientes para ajudá-los na organização de seus lares ou escritórios. Por outro lado, como as pessoas estavam mais em casa, as sócias tiveram a sacada de oferecer cursos online para instruir mulheres e até mesmo homens, que não tinham muita prática com o serviço do lar.
– Notamos que as pessoas estavam enlouquecendo em casa. Em geral, a mulher moderna não tem muita habilidade para cozinhar ou limpar a casa. E como as pessoas estavam abrindo mão das suas empregadas domésticas, montamos um curso básico, online, ensinando a limpar e organizar a casa, a escolher produtos para lavar a roupa e, ainda, dado dicas de como não manchar as roupas – revela.
Por causa dessa ação simples, mas eficaz, elas resolveram colocar em prática um plano que havia ficado de lado, justamente por causa da pandemia. O nome do serviço é Mudança Completa Express. A FAduo oferece um serviço que engloba desde a visita técnica aos locais à elaboração de inventário e o empacotamento de todos os itens. A empresa responsabiliza-se ainda pelo carregamento, supervisão, desempacotamento, categorização, higienização, organização, decoração e entrega assistida.
– As pessoas não se envolvem em nada, entramos na casa, fazemos a mudança e entregamos tudo em ordem – explica, orgulhosa.
Em 2020, que começou otimista, mas se transformou em um ano obscuro, Franciele diz ter aprendido uma importante lição.
– Aprendi muitas coisas, mas a principal é não ter medo de recomeçar, não ter medo de pensar fora da casinha. Porque, no começo da pandemia, quando comecei a ter essas ideias o que mais teve foram pessoas dizendo que não ia dar em nada, onde já se viu eu me submeter a esse tipo de trabalho. Só que hoje, algumas dessas pessoas me dizem: “puxa, você está bem né, não tem horário na agenda para mais nada” – desabafa, Franciele, por telefone, por volta das 21h, depois de sair de um apartamento em Torres, onde estava fazendo um serviço de higienização, incluindo limpeza de tapetes.