A pandemia pegou no contrapé gregos e troianos. Não importa o setor da economia, todos têm sido impactados. Apesar dos descaminhos, é preciso, urgentemente, remar e procurar a saída no meio desse denso nevoeiro. Pesquisas e sondagens têm apontado que as mais afetadas com a crise são as pequenas, médias e microempresas. Além disso, os empreendimentos familiares têm ainda um desafio a mais em meio às inesperadas mudanças fruto dessa pandemia. Precisam zelar pela manutenção do negócio, mas também do bom relacionamento familiar. Foi pensando na saúde e longevidade dessas empresas, que o Instituto de Desenvolvimento da Empresa Familiar (IDEF) realizou, entre abril e maio, a pesquisa Enfrentamento da Crise nas Empresas Familiares da Serra Gaúcha.
Foram 237 respondentes, com gestores de empresas de pequeno e médio porte, sendo 69% delas fundadas entre 10 e 50 anos atrás, estabelecidas, em sua maioria em Caxias do Sul (73%), Bento Gonçalves (13%) e Flores da Cunha (6%), representando negócios dos segmentos de serviços (45%), indústria (34%), comércio (20%) e agroindústria (1%). E 3 em cada 5 entrevistadas, ou 60%, relataram dificuldades ou estarem despreparadas para a tomada de decisões.
Em meio às crises, não apenas a comercialização dos produtos e serviços é afetada. Mas, é preciso considerar, que os primeiros a sofrerem com esse choque de uma nova realidade são os gestores. As crises, geralmente, expõem as fraquezas de uma forma ainda mais incisiva do que revelam as fortalezas que protegem a companhia. Um dos resultados da pesquisa, e que demonstra um panorama de como estão se comportando as empresas familiares na região da Serra Gaúcha, diz respeito à forma como cada uma delas tomou decisões para o enfrentamento da crise da pandemia.
– Ente as ações, vimos que as empresas tiveram de recorrer a corte nos custos, revisão de orçamentos e renegociação de prazos com os fornecedores, além de recorrerem a diferentes formas de apoio financeiro. Mas é interessante perceber como cada uma das empresas tomou decisões. Por exemplo, 45% dos gestores dizem que tiveram dificuldades para definir novos rumos. Enquanto que 15% disseram ter tido conflitos familiares na tomada de decisão. Por outro lado, 40%, disseram ter sido uma conduta rápida e com alinhamento – revela a pesquisadora e fundadora do IDEF, Hana Witt, especialista em Governança Familiar.
Apesar de 60% dos respondestes declararem que houve algum atrito na tomada de decisão para o enfrentamento da crise, do total de 237 empresas, 67% delas dizem que as mudanças implementadas serão mantidas ao longo do tempo, pois se mostraram bastante eficientes.
– É muito importante, dentro de uma empresa familiar, saber quem manda e quem obedece. Quem já possuía uma atuação mais clara e transparente, com protocolos mais definidos, tem a tendência a sair de uma crise de forma mais rápida, mantendo o negócio e também o bom relacionamento familiar. Há três fatores fundamentais para o sucesso de uma empresa familiar: a coesão, a flexibilidade e a comunicação – defende Hana.
Mais do que a confiança nesse tempo que virá, pós-pandemia, Hana entende que é preciso conciliar foco e esperança.
A raiz do negócio
Não há melhor metáfora para se tratar de uma empresa familiar, sobretudo na Serra Gaúcha, do que o vinhedo. Primeiro, porque trata de uma das leis mais populares que diz: quem planta, colhe. Segundo, porque diversas famílias espalhadas pela região foram alicerçadas em raízes profundas desse mar de vinhedos que segue dando fruto e alimentando um importante setor da economia. Um desses exemplos é a Vinícola Perini. De forma artesanal João Perini, filho de imigrantes italianos, começou a elaborar vinhos no porão de casa, em 1929. A partir dos primeiros vinhedos, enraizados no Vale Trentino, em Farroupilha, a geração seguinte, com Benildo Perini, tratou de fundar a vinícola, em 1970.
– Somos uma empresa de essência familiar, mas hoje, a gestão do nosso negócio é profissional. Acredito que o sucesso de uma empresa depende da permanência do negócio. E para que isso aconteça, chega um determinado momento em que se faz necessária a troca da gestão artesanal e familiar por uma profissional – argumenta Franco Perini, 40, presidente do Conselho Administrativo da Vinícola Perini.
Essa definição de papéis, com clareza de intenções e propósitos, a que se refere Hana Witt, tende a diminuir os conflitos, ou pelo menos a torná-los mais relevantes com foco na continuidade da empresa e no enfrentamento das crises.
– Sempre tem atrito dentro de uma empresa, seja ela familiar ou profissional. Mas, no nosso caso, são atritos construtivos e saudáveis. Hoje, em cargos executivos, somos apenas eu e o Pablo, como membros da família. E nos damos muito bem – reconhece Franco.
– Eu acho que cada vez mais, a interação profissional tem ajudado a promover um amadurecido profissional e pessoal. Com isso, aprendemos a nos ouvir, por causa do negócio, deixando de lado a “teimosia burra”. E aprendemos a pensar se a posição que estamos defendendo é mesmo pertinente – observa Pablo Perini, 36, diretor de Marketing.
A crise do coronavírus foi tratada pela vinícola como uma oportunidade. Apesar de terem se reprogramado com funcionários em home office, redução de jornada de trabalho e respeito a todas as medidas de prevenção ao contágio, Franco e Pablo entendem que souberam rapidamente encontrar uma forma de rentabilizar, para que pudessem fechar o semestre com crescimento comercial.
– Um aspecto que chamou a atenção foi o aumento do interesse das pessoas por informação sobre o vinho. Fomos a primeira vinícola do país a realizar lives com visita guiada e foi surpreendente o número de pessoas acompanhando. O que acabou gerando uma série de desdobramentos e ações de marketing – revela Pablo.
Conhecimento de todo o processo
Lourenço Stangherlin tinha uma ideia na cabeça e resolveu empreender. Seu foco era criar produtos que facilitassem a vida das pessoas na cozinha. Muitas das suas criações continuam ainda a ser testadas em casa. Todo esse envolvimento, conduziu ainda cedo, as filhas Gabriela e Mariana, a trabalharem na empresa.
– Eu e a Gabi entramos em 2001, para ajudar, uma no comercial e a outra no financeiro, porque a empresa começou pequena, com apenas três funcionários. Mas desde o início, tratamos tudo de forma profissional. Fora daqui ele é o meu pai, mas na empresa, somos profissionais. Acho que esse é um dos grandes segredos para a manutenção de uma empresa familiar – diz Mariana Stangherlin Rigo, 35, diretora Administrativa e de Marketing da Anodilar Indústria de Utilidades Domésticas.
A visão aberta para um empreendimento, sempre familiar, mas com enfoque profissional, observado também na Vinícola Perini, é um ideal desejado desde a fundação por Lourenço.
– Quando se trata de uma empresa familiar, tu sabes que tem todo um contexto, um desafio maior, por ter a família envolvida. Não é tão simples assim, mas se for bem planejado e conduzido, o resultado é muito bom – defende Lourenço Stangherlin, 62 anos, CEO da Anodilar.
Apesar de um cenário de pandemia e de crise econômica, o equilíbrio entre a experiência do pai e a ousadia das filhas tem conduzido a Anodilar a ter boas perspectivas e resultados. Foi pensando em melhorar a vida de muitos brasileiros, que em meio à pandemia se viram forçados a começar a trabalhar no ramo da gastronomia, mesmo que de modo informal, que Mariana percebeu um novo nicho que precisava ser melhor explorado.
– A gastronomia informal é uma realidade no Brasil. Em todos os momentos de crise, cresce o número de pessoas envolvidas nesse mercado. No mês de junho, por exemplo, nós batemos recorde de faturamento. Foi uma virada bem interessante, depois de um março bem difícil, por causa da parada total. Tem sido animador perceber que as nossas estratégias não têm feito apenas a nossa empresa crescer, mas também observarmos que temos contribuído para melhorar a vida das pessoas que têm pequenos empreendimentos – avalia Mariana.
Os brotos de uma mesma raiz
Nem sempre as empresas familiares resistem. Mas o importante é que a família permaneça unida. Há 32 anos, Leodacir Turatti, atualmente, com 56, veio de Relvado, localidade que pertencia a Encantado, para abrir uma padaria com seu tio, Arlei Turatti, em Caxias do Sul.
– Eu tinha 24 anos na época e trabalhava na agricultura. Como deu uma crise grave na época, acabei virando sócio do meu tio. Alguns anos depois, meu irmão Nelcir casou e tinha ido morar em São Paulo. Só que ele veio me visitar e decidimos comprar um restaurante, que se chamava Don Rafael. Logo depois, eu trouxe minha mãe e meu pai para também morar em Caxias – conta Leodacir.
Em resumo, em pouco tempo, a partir de um plantio regado a empenho e dedicação, o panificador foi trazendo os outros irmãos.
– Depois do Don Rafael, compramos a Churrascaria Espeto de Ouro, ali da BR-116. Eram sócios ali o Nelcir e o Alcir. E com o tempo, o Nelcir vendeu para o Alcir, que hoje continua a empresa com os filhos dele.
Leodacir diz que não tem do que reclamar das alianças em negócios que fez com os irmãos. E fica ainda mais feliz porque hoje, a partir do seu pioneirismo, todos os irmãos estão bem encaminhados, diz ele.
– O Nelcir hoje tem a Incorporadora Turatti, que administra com os filhos. A minha irmã Sueli, que na época eu trouxe para me ajudar na padaria, atualmente tem a panificadora dela. E a Sônia, minha irmã caçula, é fisioterapeuta e mora nos Estados Unidos.
Na mesma linha está o empreendimento de Lourdes Donazzolo. Há 31 anos, ela fundou a Jamile Calçados, cujo nome é porque estava grávida da filha Jamile.
– Eu trabalhava em uma empresa que vendia máquinas para o setor calçadista. Então, fiquei grávida da Jamile e precisei me ausentar, porque meio trabalho era com vendas e tinha muitas viagens por fazer. E como eu já tinha conhecimento sobre os fabricantes de calçado, resolvi abrir uma loja – conta Lourdes, 61, empresária.
A filha Jamile trabalhou com a mãe por um bom tempo. Mas resolveu realizar o seu sonho e abrir a sua loja.
– A Jamile sempre ajudou e, mesmo durante a crise, achou por bem abrir a sua loja, porque era um plano que ela já tinha. O meu marido, Sadi, ainda me ajuda na parte financeira. Em uma empresa familiar, não tem como a gente não se envolver. Não vivemos a empresa apenas 8 horas do dia, mas 24 – reconhece.
Mediar conflitos
Nem sempre de bons enredos vivem as famílias, ainda mais quando o assunto envolve dinheiro. O tema é mais delicado do que se pensa, revela a advogada Shirlei Omizzolo, sócia do escritório Consili – Câmara de Mediação e Arbitragem de Caxias do Sul. Há mais de 10 anos ela atua na mediação de conflitos em empresas.
Shirlei diz que, em momentos de crise, como a que estamos enfrentando, aumenta a ocorrência de conflitos nas empresas, sobretudo as de cunho familiar.
– As empresas familiares tem um contexto diferenciado, envolve muitos sentimentos e afetos, então a quebra dos vínculos é muito delicada. Um fator que complica ainda mais é quando não fica claro realmente o “qua comando mi” (aqui quem manda sou eu) – brinca Shirlei, sem perder a seriedade.
É preciso trabalhar na prevenção, argumenta a advogada.
– Normalmente, os patriarcas e fundadores tendem a trabalhar até o final da vida, e sempre acabam deixando para depois um assunto bem importante, que é a sucessão. E nem sempre os sucessores estão realmente preparados para assumir, na falta do fundador.
O diálogo é outra chave importante desse processo, acredita Shirlei.
– Quando o conflito está posto, entramos para mediar, para trazer à tona a contribuição de cada um, sem que ocorra a quebra dos vinculo de afeto.
PESQUISA
Enfrentamento da Crise nas Empresas Familiares da Serra Gaúcha, realizada pelo Instituto de Desenvolvimento da Empresa Familiar (IDEF) entre abril e maio de 2020, com o apoio de entidades e parceiros da região.
UNIVERSO
Foram 237 respondentes de empresas de pequeno e médio porte, sendo 69% delas fundadas entre 10 e 50 anos atrás, estabelecidas, em sua maioria em Caxias do Sul (73%), Bento Gonçalves (13%) e Flores da Cunha (6%), representando negócios dos segmentos de serviços (45%), indústria (34%), comércio (20%) e agroindústria (1%).
ANTES DA PANDEMIA
Nesse contexto, 45% dos entrevistados responderam que a sua empresa estava em uma condição satisfatória, alcançando o equilíbrio. Outros 32% avaliaram o momento anterior à pandemia como muito satisfatório, prevendo crescimento. Para 20% dos respondentes, as empresas apresentavam uma condição razoável, e somente 3% se mostravam frágeis.
INÍCIO DA PANDEMIA
Em relação ao faturamento mensal, já nos primeiros meses da pandemia no Brasil (março e abril), 57% das empresas tiveram recuo. Para 31% dos respondentes, o faturamento foi afetado de forma moderada. Apenas 6% disseram ter tido aumento, enquanto outros 6% não registraram alterações no período avaliado.
TOMADA DE DECISÃO
Dentre os entrevistados, 40% disseram ter se sentido preparados e afirmaram ter tomado rapidamente ações para o enfrentamento da crise. Outros 45%, por sua vez, relataram dificuldades na gestão da crise, enquanto 15% disseram ter se sentido despreparados para a tomada de decisões exigida pelo momento. Para 67% dos respondentes, as mudanças realizadas na empresa em virtude da pandemia serão mantidas ao longo do tempo, pois se mostraram eficientes.
VULNERABILIDADE
A necessidade de uma rápida adequação às novas regras fez com que muitas empresas percebessem a vulnerabilidade de algumas áreas de seus negócios. Nesse quesito, as áreas mais citadas, por ordem de prioridade, foram: finanças (gerenciamento do caixa), apontada por 70% dos entrevistados como uma fragilidade percebida em meio à pandemia; aspectos mercadológicos (concorrência e competitividade), indicada por 54% dos respondentes; e modelo do negócio (estratégia, operação e logística), citada por 48% das empresas.
SOBREVIVÊNCIA
As empresas familiares estão fazendo o que podem para sobreviver. Os respondentes citaram como prioridade as ações focadas na restruturação financeira (70%), com ênfase na gestão do caixa e no plano orçamentário. Também foram citadas a gestão de pessoas (57%), com foco no monitoramento, na comunicação e no atendimento a novas negociações trabalhistas; e as ações direcionadas a clientes e receitas (41%), observando novos mercados e segmentos, diversificando produtos e priorizando clientes-chave.
RETOMADA
Quanto à perspectiva de retomada dos níveis anteriores à pandemia, 51% dos respondentes consideraram que ela pode ocorrer no prazo de seis meses a um ano. Para 23% dos entrevistados, o retorno à condição anterior deve acontecer em um ano. Outros 22% esperam voltar ao patamar anterior à crise em seis meses. Por outro lado, para 4% dos respondentes não há perspectiva de recuperação pós-crise – esse percentual pode ser maior na medida em que a pandemia se prolongar.
PÓS-PANDEMIA
Os três principais desafios pós-crise destacados pelos empresários na pesquisa foram: desenvolver novos mercados, ampliar ou alterar produtos e serviços (79%); melhorar a eficiência financeira e organizacional (72%); e redefinir a estratégia e o modelo de negócio buscando sobrevivência da empresa (63%). Os entrevistados ainda indicaram a necessidade de buscar fontes de financiamento e incentivos governamentais (23%); reforçar ações com a família proprietária (14%); e buscar novos investidores ou sócios para garantir a sobrevivência do negócio (8%).
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