Há quem ainda negue a realidade e tente resgatar o modo como conduzia a vida antes de meados de março, quando o coronavírus parecia ser um problema dos outros. Mas se há uma verdade em meio a tantas incertezas, é a de que os impactos são inevitáveis. O desafio é saber como lidar com uma situação sem precedentes. Embora todos se dediquem ao combate ao coronavírus em tempo real, uma preocupação futura já se sobressai: qual será a reação da economia e os impactos do mercado de trabalho quanto tudo isso passar?
Essa apreensão dita, em partes, a postura social. Enquanto uns cobram a retomada imediata do trabalho, outros buscam readequar suas vidas, a começar pelos hábitos de consumo. Em levantamento realizado com mais de 2 mil pessoas, entre 25 e 27 de março, a Opinion Box, empresa especializada em pesquisas de mercado, divulgou que 72% dos entrevistados indicaram que a pandemia já impactou negativamente a sua vida, sendo que seis em cada 10 afirmaram preocupação com o risco de a renda diminuir e quase a metade acreditava que os gastos devem aumentar no período.
Como então agir numa perspectiva pessimista como essa? Cautela, talvez seja a resposta mais recomendada para evitar que o pânico seja um outro vírus que se espalhe na sociedade.
— É um momento muito novo e inédito. Muitos sequer refletiram sobre. A gente tem essas incertezas de quando vai terminar isolamento. Mas é um momento de refletirmos, sim, sobre o que de fato estamos consumindo e como temos aproveitado os nossos produtos. Muitas pessoas ainda negam a situação. Quem se deixar afetar vai poder refletir e poderá produzir uma mudança — avalia a doutora em psicologia Cássia Ferrazza Alves.
— Se conseguirmos sair deste período sofrendo o impacto negativo, mas extraindo lições, isso pode melhorar a humanidade como um todo. Vamos pensar no trabalho, como os processos estão sendo revistos, otimizados. E também repensar no propósito do que a gente faz, do nosso trabalho, das nossas ações e do nosso estilo de vida — comenta a coordenadora de Educação Financeira do Projeto Vida que Prospera da Unicred Integração, Márcia Tolotti.
Segundo ela, neste momento é que a educação financeira é primordial, afinal, trata-se de uma situação de sobrevivência:
— Eu já falo de educação financeira desde 2006, e digo sempre a mesma coisa: não compromete toda a sua renda financeira, guarda uma parte para longo prazo, guarda uma parte para imprevistos. Se tivéssemos feito isso e algumas pessoas fizeram, a situação estaria complicada, mas não tanto. Para quem não fez isso, a situação fica mais restrita e difícil. Nosso desafio é também nos perguntar: quando passar esse período, vamos continuar preocupados? Vamos entender que, se tivermos reserva financeira, vamos estar mais seguros? — questiona Márcia.
Na mesma pesquisa da Opinion Box, 45% dos entrevistados informaram ter aumentado a compra de produtos de limpeza para casa, 43% de itens de higiene pessoal, 24% a aquisição de frutas e verduras e 20%, mais medicamentos do que o normal.
A CONSCIÊNCIA COMUNITÁRIA
A professora dos cursos de Comunicação do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), Aline Corso, trabalha com seus alunos no dia a dia (agora a distância) os conceitos de economia criativa e marketing. Mestra em Processos e Manifestações Culturais, ela encontrou no contexto da crise gerada pelo coronavírus a oportunidade de realçar o debate acerca do comportamento de consumo social em meio à situação extraordinária. Em suas redes sociais, ela questionou os acadêmicos e amigos de que forma a vivência do período de isolamento e enfrentamento ao coronavírus mudou a relação deles com o consumo. A maioria respondeu que as mudanças foram efetivas e geraram maior conscientização nos critérios de compra, priorizações e formas de pagamento.
— O recorte mostrou a hipótese que eu já imaginava, de que esse momento de pandemia mudou o comportamento de compra e consumo na sociedade. É óbvio que, depois da crise, a sociedade não vai ser a mesma e teremos várias mudanças na forma de conduzir os negócios e comportamento — destaca Aline.
Segundo ela, a mudança de comportamento do consumidor já era um movimento que ganhava força e, como efeito da pandemia, amplificou:
— Já estava acontecendo movimento de as pessoas valorizarem setores da economia criativa a ter preocupação com produtor local, consumo mais sustentável, o próprio número maior de brechós surgindo, em que antes havia estigma. Agora se fala muito em apoiar os pequenos produtores e negócios, para não quebrarem. Agora mais pessoas podem começar a ter esse aprendizado — acredita.
Aline comenta também que o próprio acesso mais recorrente à internet deve transformar os conceitos de marketing no mercado.
— As pessoas se informam mais, usam da notícia para guiar suas compras. Quando se fala de melhorar higiene e limpeza, isso se reflete nas vendas, por exemplo. Outra coisa é a própria comodidade. Pessoas que não tinham hábito de compras online podem ter aprendido, e dificilmente devem se desfazer disso após o fim da pandemia.
DESTAQUES
— É o momento para pensarmos: será que eu preciso de tanta roupa? Será que eu preciso de tantos produtos? Se talvez agora neste momento estou vivendo com bem menos. O consumir o momento enquanto produto. Pode ser que, com essa mudança, iremos consumir novamente, mas com mais responsabilidade, reflexão — diz Cássia Ferrazza Alves, doutora em Psicologia e coordenadora do Núcleo de Profissões e Carreira da FSG.
— Acho interessante instigarmos o que é consumo, o que é consumismo. Depois da crise, a sociedade não vai ser a mesma e teremos várias mudanças na forma de comportamento. Isso faz mudar o comportamento de compra e de consumo na sociedade. É preciso provocar as pessoas a refletir sobre essa nova realidade — diz Aline Corso, professora dos cursos de Comunicação do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG).
— Para algumas pessoas (a conscientização) vai perdurar, para outras não. Quando o isolamento for reduzindo, naturalmente a gente vai se acomodar mais, porque temos esse funcionamento de buscar o conforto psicológico e físico. 'Ah, eu não vou pensar muito nisso porque é lá para frente, não está acontecendo agora.' Por isso chegamos ao ponto de não ter uma reserva financeira, por exemplo. Claro que estamos tratando de uma camada da sociedade, e temos de lembrar que há cerca de 100 milhões de brasileiros que não têm sequer saneamento básico, que não se permitem a reflexão. Por outro lado, a sociedade está se unido para ajudar as pessoas com mais necessidades neste momento. E isso faz também com que nos perguntemos: por que não nos unimos como povo em outros momentos para resolver esse problema? — diz Márcia Tolotti, coordenadora de Educação Financeira do Projeto Vida que Prospera, da Unicred Integração.
"Já percebi o quanto economizei"
— Moro sozinho, o que torna mais tranquila minha rotina e gastos, mas estou consumindo estritamente o essencial. Alimentos, produtos de limpeza, coisas para ficar em casa mesmo. E pensando em guardar dinheiro, porque não sabemos o que vai acontecer depois, nem se vai vir inflação ou não. Estou gastando menos porque deixei de comprar coisas supérfluas do dia a dia, que ficam para depois. Vamos adiando para manter o básico por enquanto. Já percebi o quanto economizei por deixar de consumir fora, em restaurantes, de gastar com Uber. Eu acho que depois disso estarei bem mais consciente das compras que eu faço — explica Gabriel Radaelli, 24 anos, publicitário, Bento Gonçalves.
"Tudo pode mudar de uma hora para outra"
— Pela minha experiência e idade, costumo investir meu dinheiro em coisas que vão me dar algum prazer efêmero. Agora com essa situação toda, percebi que pra mim o melhor caminho talvez seja investir em coisas, experiências que vão suprir necessidade maior e que não tragam benefícios só pra mim. Moro com a minha mãe, ela é autônoma e também sente a recessão. A gente não costumava se organizar a longo prazo porque ninguém espera que isso aconteça. É uma lição que fica que tudo pode mudar de uma hora para outra, e daqui para frente pretendemos mudar muito os nossos hábitos. Eu sempre soube que deveria me organizar melhor, mas achava que nunca ia precisar de fato. Costumo sair bastante para festas, bares, chegava a gastar 90% do meu salário às vezes. Acho que nada mais será como era. Quando tudo isso passar, o mundo vai mudar principalmente na questão do consumo. Esse período muda muito a nossa percepção da nossa realidade e do que realmente importa — diz Ana Campagnolo, 20 anos, social media, Caxias do Sul.
"O que gastamos com coisas banais"
— Estou tentando gastar mais em comida e nada no cartão de crédito, porque é uma incerteza do que vai ser os próximos meses, quanto tempo isso vai durar, o que vai ser dos empregos, dos salários. Neste momento a gente percebe o quanto gastamos de dinheiro no mercado. No dia a dia, a gente vai no mercado e nem nota. Mas agora, fazendo compras maiores, se percebe o quanto compra e também o quanto se consome rápido. Estou gastando bem menos, por não ter mais saído para comer, para ir em bares, gastar com gasolina. Eu espero tentar ter controle maior depois que esse período passar. Tentar conter o consumismo, acho que a minha noção ficará bem mais clara, o que gastamos com coisas banais, diz Davi Frizzo, 22 anos, produtor audiovisual, Bento Gonçalves.
PESQUISA
Realizada pela Opinion Box, empresa especializada em pesquisas de mercado, entre 25 e 27 de março. Foram entrevistadas 2.151 pessoas de todo o Brasil:
Mudanças de comportamento do consumidor
:: 6 em cada 10 estão passando mais tempo na internet.
:: 58% estão lendo mais notícias.
:: 48% estão mais ansiosos.
:: 45% passaram a fazer a limpeza ou faxina de suas casas.
:: 43% estão comendo mais.
:: 43% estão cuidando mais da higiene pessoal.
:: 39% estão dormindo mais.
:: 33% passaram a cozinhar.
Serviços mais impactados
:: As categorias que mais conquistaram novos usuários foram supermercado online, plataformas de ensino a distância e farmácia online.
:: Delivery teve um crescimento de apenas 4% no número de usuários.
:: Streaming de filmes e séries — tanto pagos quanto gratuitos —, TV fechada e plataformas de ensino a distância foram os que mais cresceram.
:: Serviços de motorista por aplicativo e táxi foram os que mais tiveram queda, tanto em número de usuários quanto em intensidade de uso.
:: Os usuários perceberam uma piora principalmente na internet wi-fi e móvel.
Consumo de produtos
:: 45% estão consumindo mais produtos de limpeza para casa.
:: 43% estão consumindo mais produtos de higiene.
:: 24% aumentaram o consumo de frutas, verduras e legumes.
:: 23% aumentaram o consumo de alimentos prontos e congelados.
:: 21% acreditam que neste período a sua alimentação mudou para melhor.
O que pessoas passaram a fazer
:: 45% fazer a limpeza/faxina da casa
:: 43% cuidar mais da higiene pessoal
:: 39% higienizar alimentos que chegam em casa
:: 33% cozinhar
:: 32% jogar jogos online
:: 29% ler livros
:: 26% trabalhar em casa/home office
:: 26% pedir delivery de comida
:: 25% fazer atividades físicas em casa por conta própria
MOMENTO DE CAUTELA
Gastos e consumo
:: Podemos reduzir gastos com água e luz. Vamos fazer todos os procedimentos de higiene necessários, mas não vamos desperdiçar água e luz, porque são recursos finitos.
:: Ter uso racional de comida. Pessoas fazem inúmeros lanches durante o dia por estarem em isolamento. Além de ser prejudicial para a saúde, ainda onera financeiramente. Alimentação saudável é também (sobretudo) importante neste momento.
:: Evitar gastos desnecessários pela internet. Não é hora de "aproveitar" para comprar aquilo que não é necessário.
:: Buscar uma dose de otimismo
:: Organização mental
:: É possível estar "um pouco mais preparado" e "menos preparado". Mas "preparado" não. Porém, pessoas que já estavam educadas financeiramente têm uma margem maior de segurança. Esse momento demonstra que um estilo de vida com mais propósito e segurança gera maior tranquilidade.
:: A incerteza é a única certeza do momento, e lidar com isso é muito difícil tanto econômica quanto emocionalmente. A preparação para o momento deveria ter sido antes, no sentido de estar preparado para algum imprevisto. Imprevistos acontecem, apenas não sabemos quando nem quanto vai custar. Para aqueles que já faziam reserva para imprevistos, que é a regra básica da educação financeira, o momento é menos ruim do ponto de vista financeiro. Mesmo assim, não temos como negar a realidade, quer dizer, a recessão será mundial e os impactos ainda não temos como prever de forma acertada.