Com o sol rachando, cerca de 20 pessoas se posicionam em meio ao pomar. Portando uma escada, que possibilita atingir até o topo das macieiras, cada uma delas escolhe um ponto para fincar posição. A partir daí, colhem as maçãs das árvores uma por uma, colocando-as em um cesto preso à barriga. Enquanto fazem a tarefa, a conversa rola solta no grupo. O idioma, porém, não é o português, mas sim uma língua de origem indígena.
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Todo início de ano, esta cena se torna comum em Vacaria, cidade de 67 mil habitantes localizada nos Campos de Cima da Serra. Empresas do município, principal polo produtor de maçãs do Rio Grande do Sul e o segundo maior do Brasil, têm recorrido cada vez mais à mão de obra de índios vindos do Mato Grosso do Sul. Dos cerca de 12 mil trabalhadores temporários contratados nesta safra, 2,7 mil são indígenas das etnias guarani-kaiowá, kadiwéu e terena. De acordo com a Fundação do Trabalho do Mato Grosso do Sul (Funtrab-MS), que auxilia nas seleções, o número é recorde.
— Esse número vem aumentando a cada ano. Estamos intermediando contratações de índios de 15 aldeias para nove empresas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina — comemora Enelvo Felini, presidente da Funtrab-MS, órgão que atua em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) no processo.
Em meio ao avanço da mecanização das atividades no campo, a maçã ainda resiste como uma das culturas mais intensivas em uso de mão de obra. Não há máquina que consiga substituir a precisão do toque humano para retirar os frutos. Além disso, a atividade precisa ser feita em um curto espaço de tempo, com o ciclo não passando de 45 dias na variedade gala e de 30 dias na fuji. Sendo assim, o Rio Grande do Sul, em especial a região serrana, busca uma multidão de trabalhadores entre meados de janeiro e abril para retirar todos os frutos dos seus mais de 14 mil hectares de área plantada.
Os primeiros indígenas sul-mato-grossenses começaram a aparecer nos pomares gaúchos no início da década de 2010. O diretor de fruticultura da Rasip, Celso Zancan, recorda que com o momento de pleno emprego vivido no Brasil as empresas tiveram de aumentar o leque de possibilidades na hora de contratar.
— Chegou um momento que tínhamos tanta dificuldade em conseguir gente, que começamos a analisar essa possibilidade. Com o passar dos anos, fomos melhorando nosso entendimento da cultura indígena e o relacionamento com as lideranças das aldeias. Hoje, eles já sabem como funciona o trabalho, o que nos dá tranquilidade — diz Zancan.
Dos 2,2 mil temporários contratados em 2020, 988 são índios provenientes do Mato Grosso do Sul. O montante é superior até mesmo aos 900 funcionários fixos que tem o Grupo RAR, do qual a Rasip faz parte. Na hora de distribuí-los entre os 1,1 mil hectares de pomares, que devem gerar até 60 mil toneladas, a companhia procura formar grupos com pessoas da mesma aldeia e da mesma etnia. A divisão também é respeitada nos alojamentos, onde os safristas são hospedados durante a colheita.
Toda turma possui um cabeçante, espécie de líder que monitora a produção do grupo. Há dois anos, o guarani-kaiowá Lídio Rossati desempenha essa função. Ele acompanha outros 87 indígenas vindos do município de Paranhos (MS) nos pomares, corrigindo eventuais erros, distribuindo tarefas e aconselhando os mais jovens.
— Todo mundo tem saudade de casa e da família, mas sempre falo para o pessoal vir com esperança para cá. Temos um contrato de 45 dias, precisamos chegar ao final do trabalho e voltarmos bem para as nossas famílias — destaca.
Rossati afirma que a maior parte do sustento de sua família, composta ainda pela esposa e sete filhos, vem no período da maçã. Entre as colheitas de gala e fuji, chega a ter quase três meses de carteira assinada. Este costuma ser seu único vínculo formal a cada ano. No restante do tempo, ele faz bicos de serviços gerais.
Falta de oportunidades estimula vinda ao RS
A falta de oportunidades de trabalho no Mato Grosso do Sul é um dos principais fatores que estimula a vinda de indígenas ao Rio Grande do Sul. Desempregado há cinco meses, Cleberson Lescano, de etnia kadiwéu, não pensou duas vezes em aceitar o convite para integrar um dos grupos que saíram do município de Miranda com destino a Vacaria. Ele chegou à cidade no início de fevereiro e espera ficar até meados de março, quando se encerra a colheita da variedade fuji.
— Está muito difícil, não aparece nada de trabalho lá. Conseguir o emprego aqui me deu um alívio — diz Lescano, estreante na colheita da maçã.
A maioria dos indígenas presentes nos pomares gaúchos nesta safra já veio em anos anteriores ao Estado. Conforme ganham experiência na atividade, muitos acabam progredindo nas funções dentro dos pomares. O guarani-kaiowá Adair Gonçalves vem aos Campos de Cima da Serra há sete anos. A bagagem adquirida em meio às macieiras o galgou ao posto de segurança no alojamento, o que lhe garante emprego formal durante quatro meses.
— Eu organizo as turmas que vão chegando e cuido para o pessoal não fazer bagunça — resume Gonçalves, que fica a cargo de uma fazenda com mais de 700 pessoas, sendo 70% índios das etnias guarani-kaiowá, kadiwéu e terena.
Os índios costumam voltar para suas casas ao final da colheita, em março, mas já há casos de quem decidiu fixar raízes no Rio Grande do Sul. Eliel Pereira, de etnia terena, veio em 2019 pela primeira vez para atuar como safrista e se apaixonou pelo trabalho com a fruta. Um dia tomou coragem para conversar com o supervisor da empresa, pediu um emprego fixo e teve a solicitação atendida.
— Nunca tinha visto um pé de maçã na minha vida. Fui conhecendo como funcionava a colheita e tive a oportunidade de ficar. No futuro quero trazer minha família — projeta Pereira, que tem uma filha de cinco anos.
Durante a colheita, Pereira monitora as turmas de safristas, compostas por seus antigos colegas de aldeia. Depois da safra, ajuda a cuidar dos pomares, fazendo a poda e outras atividades relacionadas à manutenção das árvores.
A logística por trás das contratações
A contratação de trabalhadores temporários para a safra da maçã começa meses antes de os frutos amadurecerem. No caso da mão de obra indígena vinda do Mato Grosso do Sul, os trâmites são conduzidos de maneira ainda mais detalhada. Representantes das empresas gaúchas mantêm contatos com as lideranças das aldeias durante todo o ano e vão conversar diretamente com os caciques dos terenas ou capitães dos guarani-kaiowá para iniciar a seleção.
Por volta de outubro, Nilson Bossardi, sócio-gerente da Frutini, costuma percorrer quase uma dezena de aldeias para anunciar as vagas. Após sete anos realizando viagens para o Centro-Oeste, hoje é recebido com pompa nos locais. Demonstrando gratidão pela oferta de empregos, os indígenas chegam a organizar refeições coletivas para recepcionar Bossardi e fazem fila para mostrar a ele os bens que conseguiram comprar com o dinheiro obtido na colheita anterior.
Na Frutini, algumas turmas já são enviadas ao Rio Grande do Sul ainda em novembro para a realização do raleio dos pomares, etapa que consiste em retirar o excesso de frutos da planta e dura cerca de um mês. No entanto, o auge da movimentação ocorre a partir da metade de janeiro, quando os ônibus partem dos municípios de Aquidauana, Miranda e Sidrolândia rumo aos Campos de Cima da Serra. Antes do embarque, a Funtrab-MS ajuda a organizar as turmas e a separar a documentação dos safristas, que têm a carteira assinada em suas cidades de origem.
Após dois dias de viagem, os terenas chegam com 45 dias de contrato garantidos para a colheita da maçã gala. Posteriormente, alguns têm o vínculo estendido por mais 30 dias para trabalhar na variedade fuji. Bossardi calcula que o transporte de cada grupo custa cerca de R$ 23 mil para a empresa. O investimento, segundo ele, compensa.
— É mais caro do que trazer gente mais de perto, mas os indígenas se adaptaram muito fácil à maçã. A qualidade do trabalho fez com que eles fossem ficando a cada safra — explica Bossardi.
Durante a safra, funcionários da Funtrab vêm à Vacaria para avaliar as condições de trabalho e hospedagem oferecidas pelas empresas. Neste sentido, eventuais irregularidades são encaminhadas ao Ministério Público do Trabalho (MPT). No entanto, o MPF-RS ressalta que não há registro de problemas recentes.
— Por ora, não temos registrados casos de ilicitudes na contratação de mão de obra indígena para a colheita da maçã. Talvez isso se deve ao trabalho preventivo atualmente realizado no Mato Grosso do Sul — avalia Gilson de Azevedo, vice-procurador chefe do MPT-RS.
No passado, os pomares vacarienses eram alvo constante de denúncias de irregularidades e até mesmo de trabalho análogo à escravidão. Azevedo, porém, ressalta que nos últimos anos vem caindo o número de denúncias apuradas pelo órgão.
Nem todos se adaptam
Apesar de crescente, a contratação de indígenas para a colheita da maçã não é unanimidade entre as empresas de Vacaria. Enquanto algumas companhias se acostumaram a trazer trabalhadores do Mato Grosso do Sul, outras acabaram não se adaptando às particularidades que envolvem trazer este tipo de mão de obra.
Desde 2013, a Frutini é uma das que mais aposta nas contratações vindas de aldeias no Centro-Oeste. Neste ano, dos 735 temporários espalhados pelos pomares em quatro municípios dos Campos de Cima da Serra, 534 são indígenas da etnia terena, a maioria com experiência na atividade em temporadas passadas. Eles serão os responsáveis por colher quase 20 mil toneladas da fruta em 550 hectares nesta safra. O bom rendimento em anos anteriores foi um dos aspectos que levaram à consolidação deste movimento.
— Se tu colocas uma turma com pessoas daqui e outra com indígenas lado a lado no pomar, a de indígenas vai colher mais e melhor. Eles aprendem muito rápido e são receptivos aos ensinamentos — elogia Fabiana Fernandes, gerente de recursos humanos da Frutini.
Por outro lado, o presidente da Associação Gaúcha de Produtores de Maçã (Agapomi), José Sozo, destaca que alguns fruticultores não se adaptaram ao estilo de trabalho de indígenas. Episódios no passado envolvendo uso de bebidas alcoólicas e drogas nos alojamentos acabaram fazendo com que algumas companhias repensassem a escolha dos safristas. O caso mais grave ocorreu em 2013, quando uma colocou integrantes de tribos rivais no mesmo alojamento. Em uma briga, dois índios morreram carbonizados após serem trancados em um quarto que foi incendiado por um grupo .
—Tem empresa que não quer mais essa mão de obra, porque é mais difícil de lidar. Ainda mais agora que descobrimos o Nordeste, que tem um pessoal mais disciplinado e que fica até 90 dias direto colhendo — aponta
Além disso, a intermediação da Funtrab-MS a partir de 2015 no processo de cadastramento dos trabalhadores indígenas não foi bem recebida por uma parcela das companhias. Alguns empresários gaúchos acreditam que a entrada do órgão acaba gerando excesso de burocracia e preferem contratar diretamente os funcionários em outros Estados.
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