“Nós somos raízes”. A afirmação é da cacica Cullung Vei-Tcha Teié, líder da Retomada Konglui, na Floresta Nacional (Flona) de São Francisco de Paula, território ancestral da etnia xokleng. A frase dita por ela não é uma figura de linguagem. Pode até ser compreendida como uma metáfora. Contudo, para a cacica o significado é literal. É que a visão de mundo dos indígenas extrapola as fronteiras do nosso entendimento, visto que está intrinsecamente ligada ao mundo espiritual. Ou seja, não há separação entre o que se vê e o que é invisível ao nosso olhar.
— Eu estou com 65 anos. De onde é que eu vim? Será que nasci agora? Estou em São Francisco de Paula, onde meus avós, bisavós e tataravós foram expulsos. Os espíritos que estão aqui, dos meus antepassados, me trouxeram para morar neste lugar com eles. Viemos para cá para cuidar desse território. Somos raízes. Agora, nós gritamos: “não ao marco temporal, sim à demarcação”. O Brasil é um território indígena — defende Cullung, cacica desde os 24 anos.
A declaração está em um vídeo publicado no perfil do Instagram Retomada Xokleng Konglui no qual a cacica enfatiza a urgência da demarcação de terras indígenas. O marco temporal é uma tese jurídica na qual os povos originários teriam o direito de viver em terras que ocupavam ou já disputavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Os espíritos que estão aqui, dos meus antepassados, me trouxeram para morar neste lugar com eles.
CULLUNG VEI-TCHA TEIÉ
Cacica xokleng
No ano passado, após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter julgado a tese inconstitucional, o Congresso Nacional recolocou a pauta em discussão. Na quinta-feira da semana passada, dia 11, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, enviou parecer ao STF defendendo a derrubada do marco temporal.
A luta pela demarcação, reatando laços afetivos e espirituais no território em que os indígenas acreditam ser o berço de sua civilização, tem sido bravamente disputado desde que Pedro Álvares Cabral atracou sua frota de naus no litoral da então terra brasilis, em 1500. Atualmente, há registros de mais de 300 etnias indígenas Brasil afora. No entanto, conforme dados do Censo Demográfico 2022, há 1,7 milhão de pessoas indígenas vivendo no país. Ou seja, apenas 0,83% da população total do Brasil.
Sob a unção dos antepassados
A cacica explica que para conseguir autorização para ocupar a Flona de São Chico, além de confiar na unção de seus antepassados, que, segundo ela, sempre apontaram o caminho para a retomada, movida pela coragem ela foi até Brasília, no centro do poder da nação, para lutar pelo território.
— A Sonia Guajajara (ministra dos Povos Originários) e a Marina Silva (ministra do Meio Ambiente) conhecem a nossa causa. Eu fui até Brasília para sentar na mesa com a Marina Silva e pedir a saída da antiga coordenação do ICMBio da Flona. Foi a nova coordenação, indicada pela Marina, que nos deixou ficar na nossa terra.
A cacica se vê como uma mulher corajosa. Contudo, ela brinca ao dizer que “coragem não se ensina, se vive”. Ou seja, na visão dela, as dificuldades e os constantes impasses ajudaram a forjá-la. Porém, ela reconhece e valoriza a unção ancestral que está sobre ela.
— Eu tenho 65 anos. Sou cacica desde os 24. Aprendi com o meu pai e convivendo com os mais antigos. Faz três anos que meu pai é falecido. Ele era o líder da comunidade xokleng, em Santa Catarina, na cidade de Ibirama. Meu pai foi o primeiro cacique xokleng de Santa Catarina. Eu sou a primeira líder xokleng do Sul do Brasil. Ele me deu conhecimento e sabedoria junto com os meus antepassados.
Cullung admite que se cansa de explicar e justificar que esse é o território dos seus ancestrais. Mas não desiste.
– Os xokleng são da luta.
Por isso, além da conquista da demarcação, outro objetivo dela, como cacica, é conscientizar o governo federal sobre a importância de reflorestar a Flona de São Chico, retirando de lá árvores como o Pinus e o Eucalipto, para enraizar a mata nativa.
— Estamos conversando com os espíritos, trazendo eles de volta. Mas e as matas nativas? Onde estão? Falta muito para trazer para cá. Primeiramente, estamos fazendo encontros com os espíritos do nosso antepassado, todas as tardes eu converso com eles. Faço isso na frente das crianças para elas aprenderem. Os animais, também estão voltando, tenho chamado os bugios. Ainda tem poucos, mas estão vindo. Nós cuidamos da floresta e dos animais — ratifica a cacica.
Entre retomadas e recomeços
A retomada, no entendimento dos povos indígenas, é o movimento de voltar a ocupar territórios de origem de seus ancestrais. As disputas se dão sob a via jurídica, porque é esse o ordenamento da sociedade dos não-indígenas. Nessa seara, vale o que está escrito. Por outro lado, a cosmovisão indígena está enraizada na espiritualidade. Isso não é exclusividade dos indígenas, porque as mais diversas religiões dissertam sobre o mundo espiritual, cada uma com suas particularidades. Contudo, é dentro da floresta que os indígenas se vinculam ao passado para que o presente faça sentido.
Em meio a constantes ciclos de recomeços, a cacica explica que seus ancestrais nasceram no que hoje se chama São Francisco de Paula. Contudo, teriam sido expulsos desse território, resultando até em mortes e, por isso, foram para Santa Catarina, em Ibirama. Ficaram por lá até que fosse construída a Barragem Norte, no final da década de 1980. Novamente, eles teriam sido forçados a se mudar. E não apenas os xokleng, que lá viviam, mas também as etnias kaingang e guarani.
— O governo fez a barragem sem nos consultar. Lá os indígenas tinham lugar para plantar e morar. Com as comportas fechadas a água subiu, quando o pessoal viu a água estava entrando nas casas e os indígenas tiveram de fugir. Quando deu essa enchente morreu até o meu vô — relata.
Atualmente, a cacica explica que 20 famílias estão autorizados a viver dentro da Flona de São Chico, mas assim que o processo de demarcação for concluído mais parentes devem subir a Serra gaúcha.
— Em 2015 eu vim pela primeira vez com o meu pai, o seu Vei-Tcha, para São Francisco. Ele quis me mostrar onde nasceu. Assim que pisei aqui tive a certeza que era aqui que os nossos antepassados viviam. Viemos para cá, para retomar o nosso território em 2019, mas só conseguimos entrar na Floresta Nacional no ano passado. Já recebemos a demarcação, saiu a portaria. Semana que vem terá uma reunião de um grupo de trabalho para iniciar o processo da demarcação. Foram os espíritos que deram isso tudo nas nossas mãos — conta a cacica.
Escola cidadã
- A cacica Cullung Vei-Tcha Teié, da Retomada Xokleng Konglui, estabelecida atualmente na Floresta Nacional (Flona) de São Francisco de Paula, conquistou uma escola indígena. Com apoio do governo do Estado, foram contratados, em agosto de 2023, dois professores indígenas, Daiane Pagnussat e Cangó Patté, para dar aulas do 1º ao 9º anos do Ensino Fundamental.
- Além do ensino curricular de disciplinas padrão, como Língua Portuguesa e Matemática, por exemplo, as crianças têm aulas de cidadania – na prática. Na semana passada, um grupo de alunos foi a Brasília com a professora. Eles participaram de manifestações contra a tese do marco temporal.
Como apoiar
- Quem quiser apoiar a causa da Retomada Xokleng Konglui, território ancestral em São Francisco de Paula, na Floresta Nacional de São Francisco de Paula, pode ajudar pelo PIX culungteie@gmail.com.