À convite do Almanaque, autores da Serra escreveram crônicas destacando personagens que marcaram suas vidas em 2023. Os convidados foram Patrícia Viale, Nil Kremer, Valquíria Vita, Marcos Mantovani, José Clemente Pozenato e Douglas Ceccagno.
Leia a seguir o texto da jornalista Valquíria Vita:
Meu personagem do ano é...
Era uma noite de Carnaval quando a minha avó, Luci, caiu das escadas do prédio da praia de Paraíso (RS). Foram apenas dois degraus, mas a sensação foi de “voar” (aquele sentimento de desorientação que temos quando caímos e não sabemos bem o que aconteceu).
Luci ficou lá por um bom tempo, gritando “socorro”, até ser resgatada. Foi trazida para Caxias de ambulância, com o fêmur fraturado, naquela que foi a viagem mais longa de sua vida (e olha que ela já foi para o Canadá).
Após passar por uma cirurgia, precisou ficar quatro meses sem colocar o pé no chão. Andou de cadeira de rodas, de andador, de bengala. Visitou médicos, tomou inúmeros remédios, fez fisioterapia, precisou de uma cuidadora. Perdeu sua autonomia, coisa que mais tinha orgulho de ter nos seus 83 anos de idade. Houve quem dissesse que ela nunca mais voltaria a andar, a subir escadas, a trabalhar.
Mas ela mostrou que todas essas previsões negativas estavam erradas. “Nunca me passou pela cabeça que eu não iria melhorar.” Hoje, ela já está caminhando, costurando, fazendo academia todos os dias e… subindo escadas.
Eu também levei um tombo em 2023. Não um tombo literal, mas uma decepção que me fez sentir o desnorteio de estar caindo de uma escada. Demorou até que eu voltasse a caminhar. Tenho certeza que você levou um (ou vários tombos este ano). Talvez você também tenha se decepcionado com alguém que considerava muito próximo, ou então, tenha terminado um relacionamento amoroso, sofrido uma traição, perdido um emprego, falhado em um projeto. Ou talvez você tenha se machucado fisicamente como a minha avó.
Tem gente que gosta de falar sobre isso, gente que prefere sofrer sozinho. Mas o fato é que o sofrimento é o nosso denominador comum. Todo mundo sofre. O que nos diferencia é como, e quando, a gente escolhe se levantar.
Passamos pelos anos e colecionamos cicatrizes: sejam elas físicas (como a de 20 centímetros que atravessa o lado da perna direita da Luci) ou emocionais (não tão visíveis assim, mas igualmente dolorosas).
Colecionamos perdas. De pessoas queridas ou de versões de nós mesmos que não somos mais.
A Luci não será mais a mesma em 2024.
Eu também não.
E eu sei que você tampouco.
Seria essa a beleza do Réveillon? Renovar-se a cada fim de ano, sem deixar que o medo das quedas te impeça de voltar a subir escadas no ano que inicia.
Minha avó – para mim, a pessoa do ano – resume bem como encarar o que vem por aí com a cabeça erguida: “Foi horrível, mas aconteceu. Fazer o quê? Vida que segue.”
VALQUÍRIA VITA é jornalista, mestre em Comunicação pela Pittsburg State University, escritora e diretora da Legado Histórias de Vida, autora de mais de 30 obras, entre biografias, perfis póstumos, livros de casais, de famílias e de empresas.