À convite do Almanaque, autores da Serra escreveram crônicas destacando personagens que marcaram suas vidas em 2023. Os convidados foram Patrícia Viale, Nil Kremer, Valquíria Vita, Marcos Mantovani, José Clemente Pozenato e Douglas Ceccagno.
Leia a seguir o texto da escritora e professora Nil Kremer:
Meu personagem do ano é...
“Você é a melhor professora do mundo”, ele diz. Eu agradeço com um sorriso de lua minguante. Eles compreendem meu olhar e perguntam se vim ouvindo mantras no caminho. E caso eu chegue de “cara amarrada”, eles afirmam: “Profe, você não ouviu mantras, hoje no caminho, não é?!”.
Eles disputavam quem levaria meu material de uma sala de aula a outra, e eu amava a forma com que abriam os corações emocionadamente, como só adolescentes sabem fazer. Vi-me neles tantas vezes e em meio ao desafio que é estar atendendo cerca de 30 crianças, adolescentes ou jovens (ao mesmo tempo), num rompante, uns olhinhos paravam ao meu lado e diziam: “Profe, posso te abraçar?”. Nesse momento acontecia como nos filmes de ficção em que o tempo fica estático por alguns segundos. Clique! E na minha mente ecoava a súplica de que eu não permita que minha criança me desampare jamais. Foram eles que me resgataram inúmeras vezes para que eu não me perdesse nos prazos e burocracias que insistiam em chegar.
Sim, queridos, o mundo dos adultos pode ser muito chato, se não cantarmos juntos em sala de aula, se não brincarmos e não assistirmos a filmes e ouvirmos músicas legais. Sim, o mundo de prazos corroídos pelo tempo escasso pode destruir a beleza de uma alma em chamas.
Era um tempo em que o tempo nos revelava mais do que os ponteiros. Assisti novamente, na última semana, ao documentário Um filme de cinema. Alunos do Ensino Médio aturdidos pela descrição do tempo sob o ponto de vista de vários cineastas deflagrando a importância da transição narrativa em frames. Olhos vibrantes ao serem apresentados ao universo da sétima arte, para além do “conteudismo”, além da necessidade de gerar mão de obra para o mercado de trabalho, sob uma perspectiva de que a alma, cerne do que vibra, seja alimentada.
Lembro do filme Tarja branca, em que a pesquisadora Lydia Hortélio afirma: “A ciência pedagógica, cada vez mais sofisticada, veio para ensinar a gente a fazer vestibular. Ninguém nasceu para fazer vestibular, nascemos para ser gente, para nos expressarmos em plenitude e liberdade em todos os talentos que cada ser humano tem”, o que a cosmovisão dos povos originários nos ensina com maestria, ao buscar reverter o estrago que a formação da sociedade dita “civilizada” causa ao atribuir sucesso ao lucro, ou ao êxito no que é competitivo.
Mas, voltemos ao bom resultado do vestibular, ele é fantástico; no entanto, não é o principal. Meus personagens (deste e de outros tempos) transcendem o vestibular. Ligados pela memória possuímos uma joia de valor intransponível, que o tempo não pode apagar e que o dinheiro não pode comprar.
NIL KREMER é atriz, performer, arte educadora e escritora. Formada em Letras (UCS) e pós-graduada em Literatura Infantil e Juvenil (UCAM). Publicou “Kamikaze” (2016) e participou da Coletânea “Misterioso Sul- Lendas em poemas” (2018), mesmo ano em que foi premiada no 52º Concurso Anual Literário de Caxias do Sul, com o 1º lugar na categoria Poesia. Está na antologia “As mulheres poetas na Literatura brasileira”, organizada por Rubens Jardim e lançada pela editora Arribaçã.