Eduardo Matias tem apenas 22 anos, mas a clareza com que discorre sobre o papel da arte em sua vida, seja diante do público ou de um repórter, faz parecer alguém que refletiu ao longo de toda uma existência. Talvez seja a oratória desenvolvida no ofício de ator, maneira que escolheu para se expressar e para mostrar ao mundo aquilo que gosta dizer em seu monólogo “O Mãozinha”: ser diferente é normal.
O caxiense nasceu com má formação congênita da mão direita, particularidade que o fez ganhar, na escola, o apelido de “mãozinha”. Foi durante a adolescência, a que Matias considera a fase mais difícil, que o teatro surgiu como um caminho para a autoaceitação e o empoderamento.
– Sempre fui uma criança muito expressiva, mas tinha um ponto introspectivo que era a minha deficiência. Na infância eu não dava tanta bola, mas na adolescência eu comecei a ter vergonha. E foi através do teatro que consegui ficar de bem com o meu próprio corpo, e poder dialogar com pessoas que também têm seus pontos introspectivos. A arte me permitiu entender as minhas potencialidades, uma vez que a gente vive numa sociedade muito capacitista, que considera que quem é diferente não é normal. O desafio que eu proponho é esse: quem não é diferente é que não é normal. Pois difícil mesmo é ser autêntico – reflete.
Matias é um dos artistas da região escalados para o 7º Festival Especial, que se encerrou na última quinta-feira, e que neste ano trouxe como novidade a inclusão de pessoas com deficiência não apenas na plateia, mas também no palco. Diversas entidades de apoio à comunidade PcD puderam conhecer o espetáculo que o ator escreveu durante o curso profissionalizante da escola Tem Gente Teatrando. Em tom autobiográfico, em “O Mãozinha” Matias encena desde momentos difíceis que passou, até a redenção pela arte:
– Normalmente quando termina o meu espetáculo alguma pessoa sente a liberdade de vir até mim e partilhar alguma questão que elas tiveram de superar sobre o seu próprio corpo. E nisso eu vejo um potencial muito grande de histórias a serem contadas.
O monólogo autobiográfico é apenas uma parte do trabalho artístico de Eduardo Matias, que também integra o grupo A Gangorra e canta no Coro Juvenil do Moinho/UCS.
UM ACORDEONISTA AUTODIDATA
É como se o acordeon fosse uma extensão do corpo de Alexandre Battisti. Não apenas pelo tempo que o farroupilhense de 48 anos dedica ao instrumento, mas por sequer lembrar de qual foi o momento da vida em que aprendeu a tocar. Mesmo as memórias de infância mais remotas são com o instrumento no colo, tocando os ritmos rurais brasileiros que são sua paixão. Em especial o cancioneiro regional gaúcho, que cantou junto com o público no Instituto de Audiovisão (Inav) na última quinta-feira, dentro da programação do 7º Festival Especial.
Nascido cego, sem qualquer resíduo de visão devido à atrofia no nervo óptico, Alexandre é músico residente no bar Paiol, em Caxias, tocando no conjunto de mesmo nome. Também se apresenta em parceria com outros artistas em Farroupilha, além de ter animado festas de rodeio, durante pelo menos 15 anos. Autodidata, brinca sobre a forma como aprendeu a dedilhar a gaita:
– Eu toco por dom de Deus e por paciência dos amigos.
O bom humor é uma das marcas de Battisti, tanto ao conversar quanto ao se apresentar, contagiando a plateia com com sua espirituosidade. Para o farroupilhense, que é pai de dois filhos, sendo um músico e uma bailarina, ser cego é apenas uma característica a mais entre tudo o que compõe sua personalidade:
– Cegos não são incapazes, nem são super-heróis. O emaranhado de pessoas no mundo é feito por muitas capacidades diferentes, e nós fazemos parte disso, com a contribuição que podemos dar.
Battisti considera fundamental o trabalho desenvolvido por instituições de apoio à comunidade PcD, não apenas no acolhimento, mas também no esforço em fazer com que cada pessoa possa descobrir sua potencialidade, assim como ele descobriu na música:
– Pude melhorar muito muita orientação e mobilidade nas instituições que frequentei, por isso consigo viver com poucas adaptações. Estas instituições abrem os nossos olhos e ouvidos e ampliam os nossos horizontes, para que a gente se sinta apto a fazer o máximo de coisas possível.
“ENXERGAR É UM EXERCÍCIO DE VIDA"
Foi na infância, apreciando os croquis da avó costureira, que a artista visual Natália Bianchi, 37, aprendeu a amar o desenho. Mais do que isso: ao rabiscar no papel, descobriu que existia no mundo:
– Eu era uma criança que fazia tudo o que as outras faziam, só que com menos intensidade. Sempre preferi as brincadeiras mais introspectivas. Mas fui percebendo que as pessoas se comunicavam muito mais comigo quando eu mostrava a elas um desenho. Foi desenhando que descobri como eu conseguia me comunicar com o mundo.
A caxiense nasceu com a chamada “cegueira das cores”, como é popularmente conhecida a acromatopsia, um distúrbio ocular que permite a pessoa de baixa visão (Natália tem 15%) a enxergar apenas tons de cinza. Mesmo podendo levar uma vida normal com o que chama de “deficiência invisível”, que não é percebida por quem não a conhece, é só na arte que a caxiense diz conseguir ser ela mesma, sem qualquer limitação.
– A arte é o único aspecto da minha vida em que eu sou completa e genuinamente quem eu sou. O papel me dá a liberdade de não precisar fazer nada diferente do que eu faria, sem nenhuma adaptação – conta a artista, que nos últimos anos assinou as exposições individuais “Acromatopos”, no Campus 8 da UCS, e “Pelas Janelas Delas”, no Instituto Quindim.
Do primeiro curso de desenho, por volta dos 8 anos, até a graduação em Artes Visuais pela UCS, Natália, que é servidora municipal, foi aprimorando os traços e desenvolvendo um estilo mais abstrato do que figurativo, com preferência pelo nanquim e um uso sutil de cores e forte inspiração na variedade de tons que percebe na natureza. Assim construiu uma identidade artística que também traduz sua maneira de ver, literalmente, o mundo:
– As pessoas ficam muito impressionadas com a riqueza de detalhes dos meus desenhos. É uma característica que desenvolvi por ter de me aproximar muito para ver. No meu universo, é preciso olhar muito de perto. E eu desenho para cruzar o meu universo com o do outro. Acho que ver não é só uma função física. É um exercício para a vida.
A DJ QUE SENTE A MÚSICA VIBRAR
Igual a todo bom DJ, Lenny Vibes é cheia de estilo. Dreads locks nos cabelos, tatuagens que se espalham pelos braços, e um inseparável fone para curtir música, com uma única diferença: o fone dela não via no ouvido, mas sim junto ao peito, para sentir as vibrações provocadas pelo som que seus ouvidos não conseguem captar. Dentro da programação do Festival Especial, a baiana, que é casada com uma caxiense, mostrou que música não é só para ouvintes, ao comandar a Baladinha Surda na Escola Helen Keller.
Com caixas amplificadas colocadas no chão de madeira para aumentar a vibração, potencializada pelas mixagens que realçam os graves das músicas, Helena, a Lenny, deu noções para as crianças e adolescentes sobre como funcionam os diferentes instrumentos e qual a batida de cada um dos seus ritmos preferidos, especialmente a música eletrônica:
– Os surdos são os que mais acham estranho existir uma DJ surda. Me perguntam se sou surda mesmo, como é que eu sei sobre os ritmos. Eles mesmos acham que a música é própria para ouvinte, e eu tenho que mostrar pra eles que o corpo é capaz de sentir as vibrações que os ouvintes percebem através dos ouvidos, e os surdos conseguem sentir muito mais, por não ter a percepção auditiva – explica.
Atualmente a DJ reside em Santa Maria, onde faz doutorado na UFSM, desenvolvendo uma pesquisa na área da música para surdos.
UMA BAILARINA MULTITAREFAS
Uma das artistas PcD mais atuantes de Caxias do Sul, a bailarina e pesquisadora Roberta Giovanaz Spader levou seu espetáculo de dança inclusiva à programação do 7º Festival Especial. Roberta, que possui uma má-formação congênita na coluna vertebral, se especializou no método danceability, que trabalha a dança para corpos diversos – não só para pessoas com deficiência, mas também para corpos fora do padrão, como obesos e idosos.
Mais do que seguir levando sua arte aos palcos, no momento atual da sua trajetória a bailarina, que desde 2015 administra o Espaço Ser Ambiente Multicultural, quer ajudar outros artistas a desenvolver projetos e a se colocar na cena cultural.
– Estou focando em dar mentorias a pessoas que me procuram sabendo que já participei de diversos projetos nas áreas da cultura, do esporte e social. Na área artística estou trabalhando com oficinas, capacitações e apresentações solo ou da minha companhia de dança, desenvolvendo projetos que serão apresentados em Caxias e também fora do Estado – conta a artista, que também é presidente da Academia Caxiense de Letras.
Na próxima quarta, Roberta e a sua Cia. Corpos Diversos estarão no Caxias em Cena, apresentando o espetáculo Diversidade em Cena. Será na Sala Valentim Lazzarotto, às 19h30min. Ingressos custam R$ 16 e R$ 8 (meia entrada).