"Mexer com a saudade de um tempo é tão bom", escreve Yaguarê Yamã na quarta capa da obra Espinho de arraia, novo livro de Roger Mello, lançado recentemente em Caxias do Sul. Essa saudade a que se refere Yaguarê, autor de mais de 30 obras, é um tipo de mergulho num baú de memórias de águas ancestrais e cristalinas. Lugar de travessia entre passado e presente, cujo destino é como uma flecha de lembranças a ser lançada para o futuro.
Ao ler o livro do Roger, Yaguarê disse que se enxergou "nos tempos de infância, conversando com os amiguinhos da aldeia". E essa foi justamente a intenção de Roger, dito por ele mesmo na entrevista a seguir, concedida no dia do lançamento (20 de maio), com sessão de autógrafos, bate-papo e crianças correndo e brincando na lúdica-livraria do Instituto de Leitura Quindim, no centro de Caxias.
Roger é um dos mais premiados escritores e ilustradores de sua geração. Já venceu o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil e juvenil, recebeu 10 troféus Jabuti e é considerado Hors Concours do Prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil de tantas vezes em que foi agraciado. Em seu currículo, Espinho de arraia é o 26º livro da carreira como escritor. Além disso, já ilustrou mais de 100 obras.
Pra mim, quando se fala em Amazônia se trata de um lugar muito semelhante à literatura para criança, onde a personagem animal tem a mesma força que a personagem humana.
ROGER MELLO
autor de "Espinho de arraia"
Se para Yaguarê, "no cotidiano indígena não existem essas distinções do que é infantojuvenil, fábula e conto", o mesmo pode-se dizer da literatura produzida em palavras, sons, silêncios e ilustrações que vertem da mente criativa de Roger. Para ele, palavra e imagem são indissociáveis, da mesma forma que não enxerga separação entre o real e o ficcional. Entenda o porquê no bate-papo a seguir.
Quando você pensa na publicação de um livro, surgem antes as imagens ou a narrativa por palavras?
As duas coisas. Às vezes, vem primeiro a história, o texto verbal. Em outras, vem primeiro a imagem. Não é uma coisa previsível. Não é algo que eu planeje. E às vezes vêm as duas coisas ao mesmo tempo. Uma imagem com muita coisa escrita.
Indissociáveis?
Pra mim, palavra e imagem são a mesma coisa. Então, esse grafar, esse rabiscar, tanto a palavra quanto a imagem, pra mim, muitas vezes ela surge ali, nesse estado premido do rabiscar, do grafar. Certa vez eu estava pesquisando sobre um escriba da cidade de Avos, no Egisto, de 3 mil anos atrás, ele usava a mesma palavra para se referir ao ato de escrever e desenhar. Então ele fala algo como, "eu sei escrever a forma do hipopótamo correndo". É como se ele dissesse "eu sei escrever a forma".
Como você definiria o sentido da ilustração e da palavra em uma obra?
A ilustração é uma imagem para o livro. E a palavra no livro é diferente da palavra em outros lugares.
Pode me dar um exemplo?
Por exemplo. "Jardins" é um livro que a Roseana Murray me mostrou os textos, a poesia e eu fiz a ilustração. Depois, ela viu o "Desertos", que foi um caderno de anotações visuais, com algum texto verbal também, aí ela me disse: "posso ilustrar com palavras?". E foi exatamente isso que aconteceu. Por exemplo, tinha uma ilustração que são três mulheres conversando no vento, numa localidade do Marrocos. Quando ela escreveu o texto parecia que a imagem tinha ficado mais sintética. Daí falei pra ela agora que tem a poesia que você trouxe, é impressionante, porque acrescentou elementos gráficos, mas a sensação que eu tenho é que a página está mais leve, o vento ficou mais forte.
E quando surgem as encomendas de ilustração. Como conciliar esse processo criativo? É meio deixar que o vento resolva isso tudo ou tem de estabelecer um processo bem organizado e padronizado de trabalho?
Tem o fator vento, mas tem o fator vela (risos), que é você driblar o vento. E acho que esse fator vela é mais forte. Não acredito nesse valor da inspiração. Ela até pode surgir. Ela surge como uma coisa de ofício.
Ou surge a inspiração por ter sido instigada por algum insight, não é?
Isso. E aí, quando vem a inspiração, o trabalho, o ofício de escrever, o ofício de desenhar, é mais forte. Porque aí você vai tem de ir atrás desse caminho. É como uma pesquisa. Se estou escrevendo alguma coisa que tenha uma relação histórica, por exemplo, estou fazendo um livro agora sobre um submarino, que passou nas costas da Bahia e do Sergipe, o U-507, é um dado histórico e a pesquisa vai ser importante. Mas eu não posso deixar a pesquisa ser maior do que a ficção. Então, eu tenho alguns dados e me dedico a inventar tudo e depois eu vou checar (risos). E é impressionante como 85% das coisas estão ali. Aí eu fico livre pra inventar 25% (risos).
Você costuma tecer narrativas entre o real e o ficcional. É uma tendência ou um processo natural pra você?
É muito interessante isso. Da mesma forma que falamos da palavra e da imagem antes, a separação ente o real e o ficcional, pra mim, ela não existe. Eu sempre falo disso. Nesse livro, "Espinho de arraia" e no "Clarice", em que escrevi sobre a minha infância em Brasília, eu sempre digo: as coisas mais loucas aconteceram de verdade (risos). Minha tia jogando um livro, amarrado em uma pedra, no lago Paranoá, para que as pessoas não vissem o livro subversivo e não prendessem a prima, isso é real! Mas a passagem de um carro, de uma casa para a outra, eu tive de criar. Não acho que nada seja absolutamente inventado.
E essa discussão sobre literatura infantil ser só para criança ler?
Na verdade, essa discussão é bem ampla...
Parece-me infinita...
Sim, é infinita. Tem um livro que se chama "Dá um sorriso pra titia" (de Diane Paterson). Então, é um nenezinho, sempre na página direita. E na página da esquerda tem a imagem da titia que diz: "Dá um sorriso pra titia?". Aí, tá vendo, você sorriu (risos). E segue a história, o nenê sem sorrir. E aí ela fala assim "se você sorrir eu trago um doce". E o menino com a mesma cara. Ela faz de tudo, fica de cabeça pra baixo, aí ela fala "se você não der um sorriso pra titia, a titia vai embora e não volta nunca mais". Aí ela vai embora e então ele sorri (risos). Entendeu? Isso tem um poder avassalador, não tem um adulto que não entra nessa história.
Da forma como você descreve, é como se houvesse um poder que nos transporta para dentro de uma história, que nos faz entrar no livro, independentemente se se trata de literatura infantil ou pretensamente adulta...
É exatamente isso. E quem ama livro, ama o objeto livro. Ama essa coisa toda.
E não interessa se é para criança, para jovens ou para adultos, né?
Não interessa. Lembro que essa coisa do nomadismo com a literatura, que foi um plus na minha vida, eu não sabia que vinha com isso. Então eu estava, sei lá, na National Diet Library, no Japão, eles queria me mostrar o maior livro e o menor livro do acervo. Eu falei, "não vai me dizer que o maior livro é o Aves da América, do John James Audubon?". Eles disseram que sim. É um livro que pra ser aberto tem de ter quatro pessoas em cada lado. Então pedi a eles se não se incomodavam de me mostrar o livro. Eu não queria ter o livro, queria apenas ver o livro. Uma experiência de ver o livro na biblioteca. Acho importante que as pessoas entendam isso. Que lá no passado as pessoas não tinham livros. Antigamente você andava meio mundo pra ter acesso a um livro.
E volta e meia alguém aparece e sentencia: "o livro vai morrer". Aí vem a pandemia e no mundo todo, inclusive no Brasil, nunca se vendeu tanto livro.
Exatamente. É como o samba, como diria o Paulinho da Viola: "só se foi quando o dia clareou". Ele fala do futuro no passado. "Só se foi quando o dia clareou". É lindo isso, não é? Eu acho ele um gênio.
E como surgiu a ideia de "Espinho de Arraia"? É fruto de pesquisa?
Esse livro tem dez anos, pelo menos. E ele já começou como concepção de livro. Desenhei a capa com o macaco uacari branco. O Brasil é o país que mais tem macacos no mundo. O Brasil é recorde em muita coisa. Somos conhecidos como "os mais do mundo" (risos). A Colômbia tem mais aves e orquídeas do que a gente, por exemplo. O Brasil é o segundo em aves e o terceiro em orquídeas. Mas, em macacos, somos os primeiros do mundo. Não tem país da África que tenha mais macacos do que a gente. E esse macaco, particularmente, me encanta, porque tem a cara vermelha e é careca (risos).
Você disse que a concepção tem cerca de 10 anos. E atualmente a Amazônia está em evidência, por diversos motivos. Faz mais sentido agora publicar o livro?
Eu queria fazer muito um livro sobre a Amazônia e, pra mim, quando se fala em Amazônia, se trata de um lugar muito semelhante à literatura para criança, onde a personagem animal tem a mesma força que a personagem humana. Isso sempre foi muito importante pra mim quando criança. Respeitar a personagem animal como aquela que tem anima, como aquela que tem vontades. Eu acredito, verdadeiramente, que as crianças não fazem distinção entre animal e gente. Eu queria isso no livro. Por exemplo, a fruta matamatá é também o nome da tartaruga-matamatá. Há muito dessa confusão da palavra e o livro todo é em diálogos e são oito crianças falando.
Mas, ao ler o livro, digo a você que funciona ter sido escrito apenas em diálogos, fica bem marcado quem é quem.
Amo diálogos, sou do teatro. Preciso caracterizar a criança que pisou no ferrão da arraia e que ou ela delira, ou narra o que aconteceu de verdade, ou inventa. São os três planos da narração amazônica, entendeu? Tudo está muito próximo do irreal. Mas é um conto de fadas sem fadas, porque não precisa de fadas. Não colocamos glossário, mas têm as imagens para que a Amazônia venha com todos os seus segredos. E como bem sintetizou Yaguarê Yamã (autor indígena), na quarta capa do livro: "Li esta incrível história e me vi nos tempos de infância, dentro do livro, conversando com amiguinhos da aldeia, num enredo bem amazônico". É isso! (risos).
Espinho de arraia, escrito e ilustrado por Roger Mello. Editora Global, à venda no Instituto de Leitura Quindim pelo site oficial. O cupom promocional de 20% de desconto é ESPINHO1.
Confira um trecho do livro
— Ih, se perdeu da menina com o isopor.
— Me distraí por causa de uma tartaruga.
— Foi atrás da tartaruga tracajá.
— Uma tartaruga-matamatá
— Essa não. Matamatá não é essa fruta que faz sombra agora?
— É.
— É uma tartaruga também?
— É.
— Mentira.
— Então fica sendo Mentira. Eu fui atrás da Mentira. A Mentira arrastou o casco pesado dela e nadou para o fundo. Mergulhei atrás.