Um dos pilares da música regional gaúcha, Honeyde Bertussi (1923-1996) faria 100 anos no próximo dia 20. O legado do acordeonista que, ao lado do irmão Adelar, revolucionou o uso do instrumento no Sul do Brasil, será celebrado com diversas atividades ao longo de 2023, fazendo jus à importância de sua trajetória construída como instrumentista, cantor e compositor.
Uma destas homenagens se deu ainda no ano passado, com a escolha do tema do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) para 2023. “Minha gaita conta a história” tem os 100 anos de Honeyde como uma das três justificativas, junto com os 60 anos do álbum Baile Gaúcho, de Tio Bilia, e os 80 anos da música Adeus, Mariana, de Pedro Raymundo. A partir da definição em congresso, cada Centro de Tradições Gaúchas (CTG) pode prestar seu próprio tributo, seja nos rodeios, nas datas comemorativas ou demais oportunidades de celebrar a cultura regional ao longo do ano.
– Os irmãos Bertussi no acordeom, junto com o Tio Bilia na gaita ponto, são os pais da música regional sul-rio-grandense. Vêm antes do aparecimento dos conjuntos musicais, como Os Farroupilhas, Os Monarcas e Os Serranos, e de uma série de festivais que viriam a ser realizados. Eles constroem a sua música a partir dos anos 1940 e 1950, coincidindo com o surgimento do próprio MTG, em 1948. A música dos Bertussi é fundamental neste sentido, por permitir a existência de uma música típica regional. Um exemplo disso é que o baile realizado pelo grupo organizador da Semana Farroupilha, de 1947, foi animado por uma banda de jazz. E ocorreu no Teresópolis Tênis Clube, de Porto Alegre, porque não existia salão próprio para baile gauchesco – destaca o presidente do MTG, o caxiense Manoelito Savaris.
Ao avaliar o legado deixado pelo pai, o arquiteto Paulo Bertussi, um dos oito filhos de Honeyde, considera como principal herança deixada para a música gaúcha a realização daquele que foi o maior objetivo em vida do filho ilustre de São Jorge da Mulada, no distrito de Criúva: elevar o acordeom à primeira prateleira dos instrumentos musicais.
– O grande legado que ele deixa é acreditar nas possibilidades do acordeom como instrumento. Porque, para o meu avô (Fioravante Bertussi), que era clarinetista e regente da banda distrital, a música exigia uma solenidade. Tu olhas as fotos e os músicos estão de “fatiota”, como se chamava o terno na época. A gaita era vista como um instrumento de segunda linha. Tu podias tocar para se divertir, para fazer farra, mas nunca para ser uma profissão. Creio que tudo o que meu pai fez como músico tinha por trás esse objetivo maior, que era o de tornar a gaita respeitada, como de fato ela se tornou – comenta o filho, morador de Caxias.
Do samba campeiro ao bugio
Além do gênio criativo que viria contribuir para a criação do primeiro e ainda único ritmo musical genuinamente gaúcho, o bugio, a determinação foi outra marca do filho de Doravante e de Jovelina Siqueira. Desde os anos em que percorria mais de 60 quilômetros a cavalo até Caxias para tomar as primeiras lições de gaita, passando pelo auge vivido ao lado do irmão, nas décadas de 1950 e 1960, e também na década seguinte, quando formaria conjuntos com o filho, Daltro, e com o primo, Paulo Siqueira, Honeyde teve a disciplina como marca.
–Ele encarava a música com uma seriedade que os músicos da época não tinham. Ele levantava toda manhã para praticar e treinava de pé, com a mesma postura do baile. E ele não marcava um baile sem ter antes um contrato assinado, que ele mandava pelo correio para o contratante e só firmava quando o documento voltasse assinado. Essa seriedade levou ele a ser, talvez, o primeiro músico do Brasil a se aposentar pelo INSS. Porque ele conseguiu comprovar sua atuação profissional desde priscas eras. A primeira apresentação que ele tem registro foi nos 50 anos do colégio São Francisco, de Vacaria, onde ele foi aluno. Ele tinha o cartaz que dizia: “animação de Honeyde Bertussi”. E aquele foi um instrumento decisivo para comprovar tempo de serviço – conta Paulo Bertussi.
Desde a primeira música, Cancioneiro das Coxilhas, composta em novembro de 1942 e marcada na partitura como um “samba campeiro” – justamente pela falta de uma identidade própria para a música produzida no Rio Grande do Sul à época – Honeyde mostrou que não chegaria na cena musical para ser só mais um. Fosse através das notas que tocava ou das palavras que escrevia, ele estava disposto a mostrar algo novo.
– Através de sua gaita, Honeyde foi um desbravador aqui nos pagos de Cima da Serra. Ele foi o palanque-mestre de uma mudança que houve no início do século passado, levando para muitos rincões a estrutura daquela música bem nativa, que antes dele praticamente só existia nas gaitas de botão, ou gaitas-ponto. Todo mundo que o conheceu aprendeu com ele e é também por isso que tantas das suas músicas continuam sendo regravadas por jovens talentos que estão vindo – avalia Paulo Siqueira, primo de Honeyde.
Música "paisagística'
Paulo Bertussi considera ainda que a combinação de talento e esforço não dá conta de explicar o sucesso do pai. É preciso também aquilo que o arquiteto chama de convergência de fatores, que podem ser interpretados como mera coincidência ou vontade do destino. Um deles é a dissolução da banda familiar liderada por Fioravante, Dois Purungos Acoierados, que levou Honeyde e Adelar a formar uma dupla quase que por necessidade. Outra, que ajuda a compreender a sonoridade única alcançada pelos irmãos Bertussi, foi o acesso a uma novidade que abalou a Criúva nos anos 1930.
– Meu avô (Fioravante) foi um dos primeiros a ter um rádio na Mulada. Aquilo causou um verdadeiro alvoroço, as pessoas iam até a casa da família conhecer aquela maravilha.
Como bom arquiteto, Paulo considera ainda como uma característica que ainda distingue a chamada “música Bertussi” o que chama de ‘paisagismo” nas composições de Honeyde e Adelar:
– Se fores analisar as primeiras músicas, principalmente, são músicas paisagísticas. Tu escutas e tu estás vendo o local que eles estão escrevendo. Isso faz com que as pessoas marquem mais facilmente na memória, como se fosse um lugar que elas visitaram. Hoje tu escutas uma música e logo depois já esqueces dela, talvez por não ter essa ligação do próprio autor com a realidade que ele está descrevendo. Especialmente quando se fala da lida campeira, Honeyde e Adelar tinham muita propriedade e aquelas histórias vividas saiam nas vozes deles.
Se o distrito Criúva pertencia a São Francisco de Paula até 1954, quando foi incorporado a Caxias do Sul, nada mais justo que os dois municípios possam festejar o centenário de um dos seus filhos mais ilustres. Em janeiro, São Chico uniu as festividades pelos seus 120 anos de emancipação política à comemoração pelo centenário de Honeyde, com exposição fotográfica e baile.
Na próxima quarta-feira, será a vez de Caxias dar início às festividades com a assinatura do decreto do “Ano do Centenário Honeyde Bertussi” pelo prefeito Adiló Didomenico, no Centro de Cultura Ordovás, às 17h. A cerimônia irá contar com apresentações de gaiteiros no palco do Zarabatana Café. Outras atividades irão ocorrer ao longo do ano, mas algumas ainda dependem de captação de recursos através de leis de fomento à cultura.
A saga de um gaiteiro
1923
No dia 20 de fevereiro, na localidade de Rincão da Mulada, distrito de Criúva, nasce Honeyde Bertussi. É um dos quatro filhos de Fioravante Bertussi e Jovelina Siqueira (Valmor, Wilson e Adelar são os irmãos).
1942
Ao completar 18 anos, Honeyde compra o seu primeiro acordeom. Quarenta dias depois, toca no primeiro baile. No final daquele ano, assinaria a sua primeira composição, “Cancioneiro das Coxilhas’”. A música viria a ser um sucesso tão grande que seu autor passou a ser conhecido também por esse apelido.
1949
Após o fim da banda Dois Purungos Acoierados, Honeyde e Adelar passam a se apresentar em dupla. O nome “Os Irmãos Bertussi” foi dado após o radialista Álvaro de Aquino, de Erechim, assim se referir aos irmãos, que foram se apresentar no estúdio. Entre as inovações trazidas pelos irmãos estão o fato de formar um duo com dois acordeons.
1954
Durante viagem ao Rio de Janeiro, Os Irmãos Bertussi gravam o seu primeiro disco Long Play, intitulado Coração Gaúcho. Além da faixa-título, o álbum traz também músicas que se tornaram grandes sucessos da dupla, como Mistura Fina e Adeus, Moçada. Ao longo dos próximo 10 anos a dupla lançaria um total de 10 discos.
1965
Ano que marca o encerramento da dupla formada com Adelar. O último show foi em 21 de março, no encerramento da 8ª Festa da Uva, em Caxias do Sul, diante de 40 mil pessoas.
1967
Com o filho, Daltro, e posteriormente também com o primo, Paulo Siqueira, Honeyde dá continuidade à carreira com o grupo Os Bertussi. "Velha Porteira" (1973) e O Tempo e a Vida (1975) são alguns registros dessa época.
1979
Honeyde passa a lançar álbuns solo, mas sempre em parceria com algum outro acordeonista, como Acioly Machado e Oscar dos Reis.
1996
Honeyde Bertussi morre em Caxias do Sul, no dia 4 de janeiro, aos 73 anos. Ele não resistiu a complicações após uma cirurgia cardíaca.
1998
O então vereador Francisco Spiandorello institui a Medalha Honeyde Bertussi, com o objetivo de reconhecer personalidades que contribuem com a conservação da cultura gaúcha em Caxias do Sul.
2002
A composição São Francisco é Terra Boa, lançada originalmente no álbum Coração Gaúcho (1955) é oficializada como hino de São Francisco de Paula, terra natal de Honeyde e Adelar Bertussi (o distrito de Criúva só seria anexado a Caxias em 1954).
2008
É inaugurado no distrito de Criúva o Memorial Irmãos Bertussi, que eterniza os irmãos Honeyde e Adelar em estátuas de bronze voltadas para o casarão da Fazenda Bertussi, na Mulada.