Túmulos e cruzes, avistados da rodovia, suscitam curiosidade de quem os observa à distância. Eles podem estar situados à beira de um rio, ao lado de uma pequena igreja ou no alto de uma colina. Às margens da Rota do Sol, entre Vila Seca, distrito de Caxias do Sul, e Terra de Areia, no Litoral Norte, há pelo menos nove cemitérios.
No distrito de Décio Ramos, em São Francisco de Paula, ao deixar o olhar passear pela paisagem verde, no topo de uma colina, vê-se um túmulo. Da estrada, não dá para perceber que são duas sepulturas. É lá, no alto da Fazenda Cidreira, que repousam Alcides Moreira de Castilhos, morto aos 64 anos, e Artelina Moreira Prux, morta aos 96. Conhecido como Seu Cidreira, de onde vem o nome da fazenda da família, morreu em 1974. Foi enterrado no cemitério do Contrato, próximo à estrada que vai para Cazuza Ferreira, mas depois de 15 dias, a viúva realizou o desejo do casal:
— Minha avó, por sua própria iniciativa, sem aval ou conhecimento dos filhos, buscou o corpo neste cemitério, na época, em uma carreta puxada a junta de bois carreiros, com a ajuda de um vizinho que se chamava Agenor Boeira — conta o neto, o médico Carlos Moreira.
Eles percorreram uma distância de aproximadamente 10 quilômetros. As sepulturas foram feitas em Taquara. Trinta e cinco anos depois, em 25 de maio de 2014, ela se juntou ao marido.
— Estarem enterrados lá foi um acordo, um desejo entre eles. A minha avó deixou à espera sua futura sepultura — relata Moreira.
Na localidade de Contendas, em Tainhas, distrito de São Francisco de Paula, cercado apenas por paisagens verdes e à direita de quem vai para o Litoral, está o cemitério Santa Cruz. Ele fica nas terras da família de Pedro Assis Santana, 75, que nasceu no mesmo ano em que foi construído o cemitério, em 1947. Apesar de estar em uma fazenda particular há quase oito décadas, o cemitério é da comunidade. O pecuarista Everaldo da Silva Santana, 51, filho de Pedro, ressalta que a tradição da família será mantida:
— Nossos familiares estão todos sepultados ali. Tem meus avós, meus tios, meu irmão e duas filhas que perdi, as gêmeas Aline e Alice, que partiram há 19 anos, quando nasceram. Moro aqui, e o cemitério vai continuar ali onde sempre esteve.
Correnteza levou sepulturas
Já em Itati há um pequeno cemitério familiar. A construção foi um pedido de Elonita Hoffmann Santana. O desejo da matriarca de ter um espaço para repouso dos familiares foi realizado quando ainda estava viva. Desde janeiro de 2003, ela repousa ao lado dos entes queridos. O cemitério fica na propriedade da família, entre a casa de um filho e o cemitério Arroio Carvalho.
– Minha vó perdeu um filho quando ele tinha 42 anos, assassinado em um assalto em Alvorada nos anos 1990, o que acabou intensificando esse desejo dela. Ele está sepultado ali, juntamente com meu avô, um dos seus filhos recém-falecidos e outro que ela perdeu ainda bebê, que foi trazido de outro cemitério para cá – conta o neto de Elonita, Willian Santana, 26.
Às margens do Rio Carvalho, em Itati, na localidade de Arroio Carvalho, abaixo do nível da estrada, está o cemitério de Arroio Carvalho. O portão é decorativo e não há cercas. O chão é de terra e grama e o barulho das águas do rio e do canto dos pássaros corta o silêncio, que é marcante mesmo em meio ao movimento dos carros. Em 2020, quando parte da estrada cedeu – no quilômetro 14,4 –, o Estado construiu uma galeria de pedras e aço, para facilitar a drenagem de água, bem ao lado do cemitério. Naquele ano, algumas lápides e partes dos túmulos foram levadas pela água.
Eliseu Klein de Oliveira, 68, conta que essa não foi a primeira vez que isso aconteceu. Há mais de 10 anos, cerca de 12 sepulturas desaparecem na correnteza. Ele é bisneto de Martim Pereira dos Santos, conhecido, como Baiano Candinho. Ele nasceu em 1846 no sertão do Ceará e foi morto na noite de 5 de janeiro de 1898, quando falsos cantadores de Reis chegaram na propriedade dele. Como era devoto recebeu os homens com candeeiro numa das mãos e uma oferenda na outra.
– O cemitério já existia quando meu bisavó, o Baiano Candinho, foi assassinado em 1898. Sempre foi ali. Ele foi morto na casa dele, em um morro que sobe para a Serra do Pessegueiro, à direita de quem vem de Caxias. Foi morto num Terno de Reis, ele foi receber os Reis Magos e sem saber da emboscada, estava desarmado e foi ao encontro da morte – lamenta o bisneto.
Mais do que a lembrança de familiares e amigos, os cemitérios guardam histórias de povos e as vidas que pulsam em uma cidade.
Portão e muro estabelecem limites entre dois mundos
Passear entre os túmulos leva a refletir sobre o significado da vida. Embora exista essa simbologia e a curiosidade sobre o assunto, o turismo em cemitérios – conhecido como necroturismo – não é tão popular no Brasil como é na Europa, onde faz parte de roteiros turísticos. Essa realidade, no entanto, está mudando por aqui também. Em Porto Alegre, por exemplo, há passeios no cemitério da Santa Casa. O pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade de Caxias do Sul (UCS), professor Everaldo Cescon, desenvolve uma pesquisa sobre cemitérios há dois anos. Mestre e doutor em Teologia, com pós-doutorado em Filosofia, ele sonha com o dia que os passeios se tornem comuns também na Serra. Para ele, o cemitério permite vislumbrar a função de abrigo aos corpos dos que partiram, mas sobretudo como um recinto com características que o distingue dos demais espaços.
— Essa identificação, inclusive, está posta fisicamente, pelo muro perimetral do cemitério ou o portão de acesso, que separa a fronteira do mundo não sagrado, caótico, daquele terreno sagrado. O muro, portanto, tem um papel simbólico de estabelecer o limite entre os dois mundos. O portão é uma espécie de umbral, entre o fora e o dentro, como uma possibilidade de passagem da vida para a morte. As sepulturas trazem em si uma série de simbolismos e linguagens ocultas, que procuram expressar a emoção que transcende a palavra.
Para ele, cemitérios podem, inclusive, ser espaços educativos, que portam verdades de ordem metafísica, evocando a crença na imortalidade e na ressurreição.
— Temos uma simbologia riquíssima que nos permite tornar o cemitério um espaço de aprendizagem e educação patrimonial. Ele deve ser preservado, não só em razão das pessoas que ali estão sepultadas e conservamos com elas laços, mas também enquanto espaço arquitetônico e de cultura, um um museu a céu aberto — ressalta.
Um cemitério com características únicas
Em uma clareira cercada de árvores repousa parte da história da imigração italiana na Serra. O passado está preservado em um refúgio onde foram enterrados colonos que atravessaram o oceano, assolados pela fome e pela miséria que assombrava a Itália. Chamado de Campo Santos dos Imigrantes, o cemitério fica na Capela São Martinho, no Travessão Martins, interior de Flores da Cunha. Tombado pelo município em 8 de agosto de 2018, como patrimônio histórico e cultural, fica a sete quilômetros da sede de Flores da Cunha. É o primeiro cemitério da comunidade construído em 1884.
Hoje o espaço é mantido pela prefeitura e pode ser visitado como um dos pontos turísticos. A subsecretária de Cultura de Flores da Cunha, Renata Trentin, afirma que o cemitério carrega uma história:
— Temos essa história imortalizada da forma mais genuína para mostrar a origem italiana, nossos costumes e manter nossas raízes. Você vê pelo que está escrito em cada lápide. Esse lugar merece respeito e só engrandece o nosso Estado, porque é um local único.
A historiadora e escritora Gissely Lovatto Vailatti explica que realmente o espaço é o único cemitério de italianos no RS com todas características originais preservadas. Ela se refere à taipa de rochas sobrepostas, lápides, cruzes de ferro com epitáfios em talian, covas subterrâneas, limbo e também ao marco da antiga estrada que passava na frente do cemitério:
— É um verdadeiro marco da presença dos imigrantes italianos que se estabeleceram no município e região, especialmente vindos do Vêneto e norte italiano no final do Século 19. Os imigrantes ali enterrados primitivamente faziam parte da comunidade São Francisco, situada no Travessão Marques do Herval — destaca.
A única lápide do cemitério foi feita com pedra grés. Ela pertence à sepultura de Domenico Caldart e foi adquirida em São Sebastião do Caí. São seis blocos, um sobreposto ao outro. Caldart chegou ao Brasil em 15 de fevereiro de 1883 e morreu em 19 de maio de 1908. Na lápide, ainda bem visível, está escrito: “Qui giaciaono i resti mortali di Domenico Caldart morto a ddi 19 Maggio 1908”. O cemitério fica a 250 metros da casa de Domingos Caldart, que faleceu em 2019. Ele cuidou do espaço por mais de 50 anos, tarefa herdada do pai, em respeito à memória dos antepassados. Neto de Domênico, foi ele quem fez uma nova cruz, para marcar a entrada do cemitério.
Bisneta de Domênico e filha de Domingos, Fátima Caldart Galiotto, 65, conta que a comunidade e a Associação Amigos do Museu se mobilizaram para impedir que o cemitério fosse destruído. Quem comprou as terras foi a família Venturini, descendentes de Domênico. Foi um dos bisnetos que sugeriu o tombamento para garantir a preservação. Ela frequenta o cemitério desde muito pequena e conhece as histórias de quem está sepultado ali.
— Se alguém quer homenagear os seus antepassados pode vir aqui. Eram imigrantes e a homenagem é a todos que atravessaram o mar e hoje descansam em baixo da terra. Minha bisavó, Giacomina, a avó da minha mãe está sepultada aqui, aponta ela, para a última sepultura, à esquerda, na mesma fileira do monumento de pedra — mostra.
Os mortos da Revolução de 1923
No fundo do cemitério, foram enterrados 40 homens mortos em combate na Revolução de 1923. O embate ocorreu no Travessão Alfredo Chaves, num trecho da antiga estrada que ligava Vacaria a São Sebastião do Caí. Ninguém sabe os nomes dos homens enterrados ali. Fátima se emociona ao contar a história dos desconhecidos.
— A comunidade do Alfredo não aceitou enterrar esses combatentes lá por causa de divergências políticas. Então, eles foram trazidos clandestinamente por uma picadinha e enterrados aqui. Como não dava para fazer um buraco no limbo onde coubessem todos, foram sepultados numa vala comum. Quando eu era pequenininha eu me lembro que ainda tinha cruzes de tocos de árvores que foram colocadas na época pelos moradores para fazer um homenagem.
Com o tempo, as cruzes desapareceram e então o pai dela, Domingos Caldart, e Plínio Mioranza, ambos já falecidos, decidiram colocar 40 cruzes de ferro para homenagear os revolucionários.
— São pessoas que foram para guerra e não voltaram mais pra casa. Cada vez que eu falo deles eu sinto um arrepio em todo o meu corpo. Os familiares nunca souberam onde eles estão. Eu me emociono e torço para que, quem sabe, alguém que tenha o bisavô desaparecido na Revolução de 1923 possa se manifestar. Quem sabe esteja aqui o falecido. São quase 100 anos de silêncio, que é inclusive, o título do livro que o Plínio Mioranza lançaria em 2023 – conta.
Cemitério Sueco em Nova Roma do Sul
No interior de Nova Roma do Sul, na RS-448, uma placa indica a entrada para o Cemitério Sueco. Ele fica em uma estrada de chão, quase às margens do Rio das Antas. Se não olhar atentamente o espaço passa despercebido, até ver a placa: Lugar histórico - Cemitério Luterano dos Imigrantes Suecos e seus descendentes. A data remete a 1890.
Há hortênsias próximos aos túmulos, que são no chão, e muitas flores, ao redor das cruzes. Para subir até ele há pequenos degraus na terra. São poucos túmulos, e apesar do mato estar mais alto é bem cuidado. Os primeiros suecos chegaram ao Rio Grande do Sul por volta de 1890. Alfred Nilsson e Nils Nilsson são alguns nomes de crianças sepultadas no local. Ao lado do nome está a idade dos bebês, que viveram por duas horas e ao que tudo indica eram gêmeos. Também há nomes como Ludvig Bohm e Paulina Nilsson.
Curiosidades
- O cemitério Capão das Ervas em Vila Seca tem esse nome porque o mato era fechado e havia muita erva mate no local
- Uma árvore em meio às sepulturas desperta o interesse de quem avista o cemitério do Apanhador, em São Francisco de Paula. É o primeiro à direita da Rota do Sol no sentido Serra-Litoral. O vento assobia forte, mesmo nos dias mais quentes, e às vezes, parece até sussurrar uma canção em homenagem aos que ali descansam.
- Entre o mato alto, na localidade de Décio Ramos, em São Francisco de Paula, os túmulos estão próximos a margem da rodovia. Pelas datas, o último sepultamento foi de Conceição Eunice De O. Gonçalves. Nascida em 28 de abril de 1929, ela morreu em 10 de março de 2006.
- Em Terra de Areia, o cemitério chama atenção pelo nome: do Espinho. Lá os túmulos são mais coloridos.
- Também em Terra de Areia no cemitério São Pedro o chão é de areia. Na primeira fileira há muitas sepulturas pequenas, que parecem ser de bebês. Há muitos túmulos de lajota e alguns foram construídos de maneira desordenada, até mesmo de lado. Há jazigos coloridos com portas de madeira ou ferro, janelas e cortinas, e em um deles há uma calçada no mesmo modelo da famosa Rua em Copacabana, no Rio de Janeiro.