Como o churrasco está para a culinária e Erico Verissimo para a literatura, a gaita está para a música gaúcha. Nenhum instrumento simboliza melhor nossa herança e tradição do que este que ajudou a imortalizar os Irmãos Bertussi, Teixeirinha e Porca Veia, só para citar alguns que marcaram época. E foi na região de colonização italiana da Serra que surgiram não só alguns dos expoentes da gaita, do passado e do presente, mas também a mais conhecida fabricante nacional, cuja memória permanece viva entre aqueles cujas vidas se misturaram com a das gaitas Todeschini, seja nos palcos ou nas linhas de produção.
É nos fundos da sua casa no bairro Botafogo, em Bento Gonçalves, que Danilo Arcari, 81, ex-funcionário da Todeschini, mantém vivo o ofício artesanal de consertar acordeões para músicos de todo o Brasil. Arcari era um dos cerca de 700 funcionários da empresa à época do fatídico incêndio que consumiu a linha de produção de acordeões, em agosto de 1971. Durante dois dias, o fogo, que iniciou após um curto-circuito no setor de pinturas, incinerou quatro mil gaitas em produção e 700 instrumentos prontos. Foi o fim da fábrica que chegou a ser a maior da América Latina na década anterior, mas também o começo da única oficina de gaitas da região até hoje.
– Na fábrica cada um era especializado numa parte. Quando me coube abrir a oficina, tive que aprender do começo ao fim: a mecânica, a música, os foles. Entrei na fábrica com 14 anos, então são 66 anos que só trabalho com gaitas. Hoje é um bom passatempo. Sempre vem algum gaiteiro. Se a gente não trabalha, adoece – comenta Danilo, único entre os atuais trabalhadores da oficina que toca acordeon, embora sem ter seguido carreira.
O surgimento da fábrica de gaitas Todeschini remete ao início do século passado, quando Luiz Matheus Todeschini (1906-1996) conheceu e se fascinou pelo instrumento como aprendiz na oficina de Luigi Somensi, na infância. Mais tarde ambos iriam aprofundar os conhecimentos na casa de um casal de italianos, Cesare Appiani e Maria Savoia, que tinha uma pequena fábrica de gaitas em Santa Tereza, posteriormente vendida à família Somensi. Todeschini compraria a fábrica em 1932, dois anos após a trágica morte de Luigi Somensi, durante uma viagem de navio para a Itália. Surgia ali, com nome pomposo a “Grande Fábrica de Instrumentos Musicais e Foles de Luiz M. Todeschini”.
– A viúva não queria mais se envolver no negócio e ofereceu a fábrica ao meu pai. Ele parcelou e continuou a fabricar sozinho. Conseguia fazer apenas uma gaita por mês, que quando ficava pronta ele ia a cavalo ou de bicicleta para Garibaldi vender. Com o dinheiro, comprava comida para a família – conta Mário Todeschini, um dos filhos de Luiz Matheus.
Quando os negócios começaram a melhorar, Todeschini tirou a fábrica do interior e a levou para a zona urbana de Bento Gonçalves. A instalação da nova fábrica, na Rua 10 de Novembro (atual Via Atacadista), teve percalços, segundo relata Lóris Todeschini, também filho do fundador.
– Quando ele chegou da colônia e começou aqui na cidade, logo os padres disseram que a gaita era um instrumento do pecado, que, naquela época, a festa, a dança, era uma coisa do diabo, então ele tinha que ajudar a igreja pra pagar os pecados, tu sabe como é essas coisas né, e ele disse que não, que ele era católico, que era pra alegrar o povo, o instrumento era pra alegrar, que as pessoas tinham que ser felizes. Foi um trabalho árduo até conseguir conquistar a confiança da igreja e da comunidade mais fervorosa – conta Lóris, que na adolescência era encarregado de conduzir os turistas em visita à fábrica.
ASCENSÃO E QUEDA
Após esse início turbulento, foi em Bento que a fábrica de gaitas Todeschini teve seu auge, tornando-se a primeira indústria de uma cidade que ainda tinha as vinícolas e cantinas como principal atividade econômica. Na década de 1960, quando chegava a fabricar cerca de 1,5 mil gaitas por mês, a marca tinha como principais “garotos-propaganda” os irmãos Adelar e Honeyde Bertussi, que também atuavam como consultores de qualidade da produção. Outro entusiasta era Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, que fez uma visita à fábrica em 1967, a fim de buscar a “gaita dos sonhos”, um exemplar de cor branca que o pernambucano encomendou pessoalmente a Luiz Matheus Todeschini.
A visita é assim retratada no livro Janelas da Memória, do escritor e jornalista bento-gonçalvense Ademir Antonio Bacca, lançado em abril deste ano.
“Tudo começou com um telefonema do Rei do Baião ao empresário Luiz Matheus Todeschini, comunicando que ele estava a caminho de Bento Gonçalves em busca do acordeão dos seus sonhos.
– E o senhor, seu Luiz, vai fazer essa sanfona para mim – disse o cantor nascido em Exu, em Pernambuco, ao se despedir.
Poucos dias depois, Gonzagão chegava a Bento Gonçalves e se instalava na casa do empresário, onde permaneceria por duas semanas. De imediato, disse ao empresário como queria a sua sanfona, em tamanho fora do padrão da linha Todeschini, e deixou claro que ela tinha que ser branca, para contrastar com o gibão de couro cru que usava em suas apresentações.
Luiz Matheus reuniu alguns dos seus melhores colaboradores e, tendo Gonzagão palpitando ao lado, dedicaram quase 10 dias exclusivos de trabalho para fazer a gaita dos sonhos do já então ídolo da música popular brasileira. Concluído o trabalho, era preciso inaugurar a sanfona em grande estilo.
E foi o que aconteceu em pleno centro da cidade, em frente ao Edifício Bento Gonçalves, quando Gonzagão apresentou oficialmente a sua sonhada sanfona branca para uma grande plateia que se formou ao seu redor já no primeiro acorde. Logo após os primeiros acordes, aconteceu um fato inusitado: o tradicionalista Edes Moré, acompanhado do filho Luciano, devidamente pilchados, alinharam- se a Gonzagão, vestido a caráter com sua roupa nordestina. Num gesto de carinho, o cantor tira seu chapéu de vaqueiro da cabeça e o troca pelo gaudério de Moré, sem interromper a canção que interpretava, sob os aplausos da população”.
Se os anos 1960 foram de glória, o incêndio de 1971 ocorre numa fase de declínio, em que as vendas haviam despencado devido à popularização da guitarra elétrica e dos teclados, impulsionados pela febre da Jovem Guarda. Após o episódio, a empresa, que já não alcançava bons resultados com os instrumentos, passou a focar na construção de móveis – ramo em que até hoje é uma das mais importantes fabricantes do Brasil. Tendo surgido como fruto de uma tragédia – a morte de Luigi Somensi no navio –, outra fatalidade encarregou-se de dar fim à fábrica, mas não à história das gaitas Todeschini.
Ao encerrar a linha de produção de acordeões, o empresário José Eugênio Farina (1925-2020), acionista que havia assumido o controle no início dos anos 1970, fez um acordo com Danilo e outros funcionários: eles entregariam 100 gaitas prontas e, em troca, “herdariam” o restante das peças e do maquinário para iniciar uma oficina. Com o passar dos anos, e já se vão 50 desde o incêndio, alguns dos ajudantes de Danilo Arcari pararam de trabalhar ou morreram. Atualmente, o time é formado por cinco minuciosos especialistas, que cuidam desde a troca de componentes (um modelo como a Super 8 pode ter até 3,8 mil peças) até a afinação das palhetas. Um dos remanescentes é Fiorentino Mattevi, que trabalhou por mais de 20 anos na antiga fábrica, da qual guarda saudades.
– A gente não era músico, mas era considerado artista no que fazia. Era uma honra dizer que era funcionário da Todeschini, porque era a grande indústria da cidade. Tudo isso fica na nossa lembrança, porque a gente entrava com 14, 15 anos e era ali que passava a juventude – conta Mattevi.
Lóris e Mário, filhos de Luiz Matheus, ainda moram no casarão da família na mesma rua em que ficava a fábrica. Guardiões de parte do legado das gaitas Todeschini, preservam algumas relíquias da empresa, desde gaitas e material publicitário da época até documentos e fotos.
Parte do acervo da antiga fábrica pode ser visitada na “sala de gaitas” do Museu do Imigrante de Bento Gonçalves. O espaço mantém em exposição permanente quatro acordeons, um harmônio (outro instrumento fabricado pela Todeschini, em menor escala) e um afinador de gaitas.
(Reportagem feita em parceria com a repórter Tainara Alba, da RBS TV)
Eles não trocam sua Todeschini por nada
A entrada de outras fabricantes no mercado e a popularização no Brasil de marcas estrangeiras, como as italianas Scandalli e Pigini, diversificaram a preferência dos gaiteiros país afora. Mas a Todeschini se mantém entre as preferidas, por fatores como o custo-benefício e, principalmente, o timbre único. Timbre, em música, é a marca registrada de um instrumento, ou mesmo da voz humana: é a característica que a torna única. E o fato de muitas gravações terem sido feitas com a fabricante serrana faz com que os mais “tradicionalistas” ainda recorram à marca para alcançar o som mais próximo do original.
– O timbre da Todeschini é muito particular, bem diferente das italianas. Principalmente para tocar os ritmos que a gente toca nos bailes aqui da Serra, como o bugio, o xote, a vanera ou a rancheira, é um som muito característico. Para imitar o ronco do bugio, que a gente faz utilizando os baixos e o jogo do fole, não tem melhor que a Todeschini – explica o acordeonista caxiense Paulo Siqueira, 72.
Primo dos irmãos Bertussi, Siqueira tem uma longa trajetória dividindo os palcos com Honeyde Bertussi nos anos 1970, e também uma sólida carreira como artista solo. E desde 1973 o acompanha a mesma gaita modelo Super 8 Todeschini, com a qual já gravou dezenas de álbuns e tocou em centenas de bailes. O instrumento, é claro, não poderia deixar de ter uma história peculiar:
– É uma gaita que um funcionário fez com todo o capricho, para ele mesmo. Um tempo depois o Honeyde soube que ele queria vender e me avisou. Fiz a oferta, mas ele disse que estava reservada para a Mary Terezinha (parceira de Teixeirinha), que iria lá experimentar. Mas aconteceu dela achar o instrumento muito pesado, daí acabei ficando com ele – conta o músico, que tem ainda outras duas gaitas Todeschini, que utiliza quando a principal está na revisão, ou para dar aulas.
Siqueira, que ganhou o primeiro instrumento aos 9 anos, conheceu a fábrica da Todeschini em Bento Gonçalves Ele lamenta ter tido a oportunidade de tocar num instrumento que seria histórico, mas deixou passar a oportunidade, que depois se revelou única:
– Na última visita à fábrica me mostraram uma Super 8 personalizada, pois era a unidade de número 100 mil produzida pela fábrica. Ofereceram para eu trazer para Caxias e tocar nela por um tempo, mas achei que seria muita responsabilidade e não quis. A gaita acabou sendo uma das que queimaram no incêndio.
Com o seu nome gravado no instrumento, Siqueira não pensa em trocá-lo por outra marca ou modelo. Não importa quantos anos ainda tenha de carreira, confia numa das características da Todeschini, que é a durabilidade:
– Uma gaita bem cuidada dura 100 anos. Basta ver essa aqui. Se tu és da Serra sabe como eram os bailes de antigamente: tinha que clarear o dia. Era “puxado” pro gaiteiro, mas também para o instrumento.
INVESTIMENTO PARA A VIDA
Expoente da nova geração de acordeonistas da Serra, a florense Gisele Rissi também tem na Super 8 da Todeschini o seu xodó. A musicista conta que foi preciso um esforço extra para adquirir o instrumento, que pode custar até R$ 20 mil na internet, mas que valeu a pena.
– Desde que abri o estojo e deparei com essa cor vermelha, reluzindo, achei linda e não quis mais saber de outra gaita. Foi sofrido para pagar, tivemos que economizar em casa por um tempo, mas é um bem que eu não vendo, nem troco por nada.
Personalizada com o seu nome abaixo da marca, a gaita fabricada em 1968 acompanha a artista há oito anos em shows, gravações profissionais e vídeos para a internet. São como duas amigas inseparáveis:
– Quando a gente se identifica, igual eu me identifiquei, torna-se mais do que um instrumento.