Ainda deve estar para nascer o artista que separe a arte da vida pessoal e para o qual trabalho seja mera ocupação profissional. Ser artista é morar na arte. Para os que fazem da casa seu próprio estúdio ou atelier, isso é quase literal. Quando optou por deixar a casa em que vivia na área central de Caxias para construir um refúgio na bucólica localidade de Monte Bérico, há dois anos, a escultora Daniela Antunes quis dar à casa um pouco cara de lar, um pouco de atelier.
— À medida em que fui me desiludindo com o modelo de venda pelas galerias, passei a investir nisso como projeto: focar na venda direta, principalmente pela internet (@escultora–daniela–antunes), podendo receber pessoas para mostrar o meu trabalho com calma, tomar um café, e também abrir este espaço para artistas que eventualmente queiram fazer um workshop — relata.
A mudança permitiu à artista, reconhecida pelo trabalho em cerâmica, ter mais liberdade para trabalhar sem as intervenções comuns à vida na cidade e aproveitar melhor o tempo livre para refletir e planejar a vida. Foi assim que decidiu voltar a estudar e iniciou a graduação em Artes Visuais, na UCS:
— Poder desacelerar me fez enxergar a necessidade de compreender melhor meu próprio trabalho, a fim de ter uma argumentação melhor e mais repertório para explorar a técnica.
Se é verdade que a pandemia ainda não permitiu realizar os workshops e receber convidados com a frequência que gostaria, a casa de Daniela tem um pouco da presença dos amigos para onde quer que se olhe: coabitam obras de Rafael Dambros, Frei Celso Bordignon, Marinês Busetti, Antonio Giacomin, entre outros.
— Além de privilegiar o trabalho de outros artistas, gosto de estar rodeada por coisas que me remetam a algo que me traga boas memórias afetivas. Imagens sacras, por exemplo. Apesar de eu não ser católica, via muito nas casas das pessoas na minha infância e até hoje me traz sentimentos bons — diz.
Para harmonizar com as peças de arte, Daniela prefere mobília rústica. O que não é feito ou restaurado pelas próprias mãos, é reaproveitado de espaços comerciais que fecharam as portas. Algumas portas e janelas, inclusive, são da pizzaria La Barra, que encerrou as atividades na Estação Férrea. Objetos que enchem a casa de história para contar, além de servir como inspiração para criar obras como a coletânea de terços cerâmicos que estarão na sua próxima exposição, prevista para estrear no ano que vem, no Centro de Cultura Ordovás.
Gêmeas de sangue e de alma
O cantinho da sala onde fica a máquina de costura trazida do México, ao lado da estante de livros em que prevalecem obras de História e literatura latino-americana, simboliza bem a proposta e o espírito das gêmeas Pâmela e Paula Grassi, 31. Há pouco mais de uma década as duas criaram a marca Marias Lavrandeiras, voltada para a moda artesanal e sustentável com um toque militante. A própria origem da marca tem a ver com o estilo de vida das historiadoras-artistas-empreendedoras:
— A gente fazia as roupas para vender nas viagens de militância e cobrir os custos — conta Pâmela, que mora no apartamento onde as irmãs se reúnem para produzir fotos das peças para as redes sociais, no bairro Rio Branco.
Embora as camisetas, moletons, bolsas e macacões tragam desenhos ou poesias com mensagens que remetem às lutas das feministas, dos indígenas ou outras pautas de relevância social, Paula explica que a linha seguida por ambas é a do diálogo.
— Desde a Pastoral da Juventude, até a faculdade e o mestrado, ambas seguimos uma base freiriana muito forte, de priorizar o diálogo como forma de acessar as pessoas e construir pontes, ao invés de bater de frente. É muito legal quando conseguimos vender uma peça com um verso que parafraseia Violeta Parra (artista chilena), para uma pessoa que talvez não comprasse se soubesse que ela era filiada ao partido comunista — exemplifica.
Trabalhando cada peça desde a confecção até a pintura e utilizando técnicas como o estêncil em chapas de radiografia, as Marias – o nome foi dado em homenagem à mãe, costureira que contribui com a marca, e a vó, bordadeira, ambas chamadas Maria – buscam suas referências no vestuário de países como Argentina, Chile e México.
— Principalmente no inverno, a gente percebe que em Caxias e no Sul do Brasil tudo é muito cinza, inclusive as roupas. Tentamos trazer um pouco mais de colorido, algo que a gente vê como parte da cultura destes países — explica Paula.
Com 14 mil seguidores no Instagram (@marias.lavrandeiras) e o foco nas vendas pela internet, as gêmeas vendem 70% das peças para fora do Rio Grande do Sul. Como forma de ajudar a cena artística local, gostam de enviar com o pedido alguns adesivos com desenhos de outros artistas de Caxias. Também no envio é dada atenção especial ao mínimo impacto ambiental: as peças são envolvidas em laços de retalho de tecido e embaladas para envio em papel pardo.
— De uns tempos para cá se fala muito mais em marcas sustentáveis e valorização do trabalho artesanal, mas acho que, por sermos filhas de costureiras, isso sempre foi muito natural pra nós. O que fazemos reflete aquilo que somos — diz Pâmela.
O infinito particular de Tere Finger
Não é por acaso que o espaço onde Terezinha Finger se permite ser artista em tempo integral é uma ampla casa na área central de Flores da Cunha, onde o visitante tem a impressão de que os cômodos são infinitos, assim como as obras de arte espalhadas que se espalham pelas paredes ou repousam em algum suporte. São milhares de desenhos e pinturas que a prolífica artista produz diariamente, numa rotina “de chão de fábrica” que impõe a si mesma na busca pelo aprimoramento:
— Este é o lugar onde eu pinto, canto, berro, danço. Venho aqui para me desconstruir e reconstruir todos os dias .
Terezinha não reside no casarão adquirido por ela e pelo marido há seis anos, mas é nele que passa dias, tardes e algumas noites. A expansão do espaço físico para se dedicar à arte acompanhou o crescimento da própria carreira: após um início tímido, em que pintava num atelier restrito a uma sala de 2m x 3m, seguiu-se um período de efervescência, marcado por exposições, presença em galerias e encomendas para todo o Brasil e para o exterior. A artista vê como um divisor de águas em sua formação o período em que foi professora de Artes na Apae.
— Devo muito aos meus alunos. O artista costuma ter uma preocupação muito grande com o que vão achar dele, com a aprovação do que faz, e aquelas pessoas me mostraram que a gente pode viver sem medo e sem se importar. Aqueles oito anos em que lecionei na Apae desencadearam a Tere de hoje — analisa a expressionista.
Da mesma forma que a casa-atelier jamais recebeu os acabamentos necessários desde a compra, Tere também considera estar em construção. Com o passar dos anos, o exercício artístico que no começo era mais catártico, tornou-se mais técnico na medida em que passou a ser mais embasado por pesquisa e pelo incessante treino do traço.
— O que move o artista é a procura por um problema. Ele inventa o problema para ele mesmo solucionar. Quando solucionou, aquilo já é passado. Faz parte de uma busca por uma identidade que em mim ainda é muito forte — reflete.
O carinho com que recebe cada visitante que a encontra pela @studioterefinger, e a paciência com que mostra e detalha cada obra, discorrendo sobre as técnicas utilizadas e as estéticas que a inspiraram, têm a ver com a personalidade de uma pessoa que pinta a própria busca por um mundo mais amoroso:
— A gente busca sair do clichê, encontrar formas diferentes para expressar algo que, no fim, é muito simples: só vai ter mudança no mundo se tiver amor e cuidado com o próximo.
A oficina artística de Victor Hugo Porto
“O rei do meu reino”. É como o pintor e escultor Victor Hugo Porto diz se sentir quando está no atelier que construiu e mantém há cerca de 15 anos em uma casa de frente para a lagoa do Desvio Rizzo, em Caxias do Sul. Embora resida em Farroupilha, é em Caxias que o artista de 66 anos literalmente “mora” de segunda a sexta-feira, passando a maior parte dos dias e das noites em meio ao material de trabalho e dezenas de criações, entre inéditas ou que já foram e voltaram de galerias e exposições pelo país.
— Começo a trabalhar cedo pela manhã, vou tarde e noite adentro, e às vezes vejo o dia nascer sem me dar conta do tempo que passou — conta Victor, que se dedica exclusivamente à arte há 40 anos.
Foi com a própria arte que Victor pôde viabilizar a compra do terreno para erguer a sonhada casa exclusiva para o trabalho, após produzir um mural de 2m x 40m para um supermercado caxiense, nos anos 1990. A construção levou cerca de oito anos.
— Começou com um galpão. A cada quadro um pouco maior que eu vendia, conseguia investir mais um pouco. Não posso dizer que tenha terminado, mas também não penso mais em mexer — diz.
Passear pelos cômodos do atelier é ter uma aula sobre a diversidade do universo das artes plásticas: afinal, o caxiense esculpe em madeira, ferro e resina, cria gravuras em madeira e serigrafia, pinta com todo tipo de tinta e desenha a todo tipo de lápis.
Foi no atelier que o artista se aprimorou nas estéticas cubista e expressionista e desenvolveu o apreço por desenhar figuras femininas, em especial “gordinhas cheias de sensualidade”, como ele mesmo diz. Atualmente, Victor trabalha em uma série de desenhos com crayon intitulada “Marionetes”, que irá inaugurar em setembro, em Caxias. Entre criações temáticas visando exposições ou galerias, e obras encomendadas por clientes diretos ou por arquitetos que as incluem em seus projetos, Victor comemora um momento de demanda crescente, o que significa ainda mais horas entregue trabalho.
— Com as galerias fechadas (na pandemia) passei a divulgar melhor meu trabalho na internet, ao mesmo tempo em que as pessoas também passaram a procurar mais arte para suas casas, e nisso acabaram me “descobrindo” nas redes sociais — comenta o artista, que está no Instagram como @victorhugoporto19.