Claro que o sotaque típico dos descendentes de italianos ainda é o som mais característico da vindima na Serra. Ele geralmente pode ser identificado em conversas animadas que se fundem ao barulho dos “piques” de tesoura responsáveis por retirar rapidamente a fruta de seu local de origem. Mas a fundamental mão de obra safrista que movimenta a economia local carrega em si uma pluralidade tão diversa quanto as próprias variedades de uva fincadas no solo da região. Embaixo dos parreirais, cruzam-se esforços de gente vinda de vários lugares do país, donas de diferentes identidades culturais.
Há uma grande dificuldade em conseguir dados oficiais que apontem quantos safristas costumam trabalhar na vindima na Serra. Isso porque os perfis implícitos nessa mão de obra variam bastante.
– É quase impossível conseguir esses dados. Muitos são parentes que vêm trabalhar em troca de produtos como o próprio vinho, outros são vizinhos que trocam dias de trabalho entre si – aponta Rudimar Menegotto, atualmente secretário de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Caxias do Sul e que conhece muito bem o setor por conta de sua atuação como presidente do Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares da cidade.
No entanto, Menegotto chuta que das 1,6 mil famílias que trabalham com uva na cidade, pelo menos metade utilize mão de obra safrista fora do acordado entre familiares ou vizinhos. Algo que provavelmente possa se repetir entre as cerca de 15 mil famílias produtoras do Estado.
Outro dado difícil de descobrir é quanto ganham os trabalhadores da safra de uva.
– Cada vinícola tem uma forma de contratação de safrista em diversas atividades, aí os salários são diferentes, depende do tempo que vai ficar na empresa, etc – diz Deunir Argenta, presidente da União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra).
O que se tem certeza é que os salários são sempre um importante atrativo para quem vem trabalhar na vindima, mas não somente. Conheça a seguir algumas – entre as tantas – pessoas que atrelam suas histórias de vida à colheita da uva na Serra.
A mão de obra local
Há cinco anos, o universo particular da farroupilhense Lisa Viero, 38 anos, em quase nada se conectaria com o ambiente da colônia que nesta época lhe serve como companheiro por quase 12 horas diárias. Foi por meio do trabalho como artesã – confeccionando brincos, colares e anéis – que ela acabou conhecendo a dona de uma das propriedades onde atualmente colhe uva, no 4º distrito de Farroupilha, na comunidade de São Roque. Na época, foi atraída pelo salário. Hoje em dia, coleciona muitas outras razões para não abandonar o ofício de safrista.
– Tá vendo? Este trabalhinho aqui fui eu que fiz – orgulha-se ela ao colher um cacho e identificar uma amarração presente no pé, feita por ela meses antes da colheita. – Adoro amarrar, imagina se uma artesã com habilidades manuais não ia se dar superbem aqui? – brinca.
Lisa conta que antigamente era uma pessoa com hábitos bem urbanos e que só tomava “vinho do mercado”. Depois que começou a trabalhar na vindima, em 2016, expandiu seus conhecimentos acerca da bebida e hoje considera-se privilegiada por poder saborear um vinho sabendo de que parreiral ele se origina. Pegou tanto gosto pelo contexto da uva que sonha até mesmo em um dia poder cultivar seus próprios parreirais.
– Quem sabe um dia eu compro uma terrinha, acho que esse vai ser meu futuro, ir pro meio da colônia plantar umas uvas. Eu gosto de fazer isso um monte.
De personalidade um pouco rebelde e anarquista, como ela mesma diz, a farroupilhense também chama atenção no meio da vindima por conta de seu visual. Entre as muitas tatuagens que exibe estão imortalizados os nomes de algumas de suas bandas preferidas: Queen, Rush, Kiss e The Doors. A escolhida para embalar os dias de colheita, no entanto, é Black Sabbath.
– Eu boto meu fone de ouvido com toda a discografia deles, então, é Black Sabbath direto. Às vezes tô assim (movimenta a cabeça como se estivesse curtindo um rock pesado) colhendo uva. Pra eles aqui, sou um “bicho raro”, chega até ser engraçado. É um som que dá uma adrenalina. Mas tenho uns Vivaldi nos fones também, As Quatro Estações, não é só Black Sabbath não – pondera.
Além da colheita, amarração e poda da uva, Lisa também trabalha na safra do pêssego, que ocorre de setembro a dezembro. Dentre as dificuldades do trabalho rural, ela menciona o fato de ficar somente cerca de duas horas por dia com o marido – o chileno Luiz, que tem um estúdio de piercing e tatuagem no centro da cidade. Mas todo esforço compensa. Lisa diz que se tornou mais humilde convivendo com os colonos e que jamais se imagina trabalhando “presa numa firma”.
– A gente vem aqui porque gosta, tem prazer em fazer o que faz. Enquanto eu tiver saúde e idade, vou estar sempre colhendo uva – afirma.
A força dos mais experientes
A colheita da uva é um ambiente ainda muito fértil para trabalhadores que já passaram dos 60 anos. Geralmente, esse perfil de safrista integra a própria família dos produtores rurais. Mas no caso da propriedade de Adair Cecconi, em Monte Belo do Sul, há profissionais de mais idade que vêm de longe como contratados para colher uva. É o caso de José Conde Ribeiro, 68 anos, que vive em Riqueza (em Santa Catarina) e vem à Serra há dois anos para realizar esse trabalho.
Experiente, ele conta que já “fez de tudo” nesta vida. Foram cerca de 10 anos trabalhando com obras, mas é com a lida rural que ele mais se identifica.
– Comecei na lavoura mesmo, trabalhei com fumo, feijão, milho, soja, depois mudamos para leite, para porco, para gado – lista ele.
Foi nesse ambiente que conheceu o amigo conterrâneo Valcir Luiz Dalmoro, 42, que o convidou para vir trabalhar na Serra. Acostumado com o serviço braçal, Conde diz que não sente a idade quando está colhendo uvas. O ambiente ao redor ajuda:
– É gostoso, tu chega no mato e tem aquele cheiro mais vivo, parece.
Tendo conquistado a confiança dos patrões na colheita do ano passado, em 2021 Conde foi convidado a voltar trazendo junto a esposa, Vanilda. Ela ficou responsável por fazer a comida e lavar a roupa no alojamento ocupado pelos safristas.
– É bom que daí a gente não sente muita saudade – diz ele, sobre a presença da esposa durante os dias fora de casa.
O ambiente familiar também é garantido pela boa convivência ao lado dos demais colegas, a quem Conde se refere como “irmãos”. Conforme ele, a expectativa é não abandonar o serviço até que a saúde permita.
– Para mim, na minha idade, a melhor diversão é trabalhar – sentencia.
Grupo Kaingang na colheita
A língua nativa dos índios Kaingang que vivem no município de Liberato Salzano, no norte do Estado, também é preservada embaixo dos parreirais de uma propriedade do interior de Bento Gonçalves. Por lá, um grupo de 16 indígenas trabalha pelo terceiro ano consecutivo colhendo uvas. É o caso de Aldori Moreira, 25 anos, que conta já ter ensinado até mesmo algumas palavras em Kaingang aos “brancos” da colônia.
– Para nosso patrão já ensinamos umas quantas palavras, como “bonito”, que se escreve siyhg – soletra.
Todos os indígenas contratados pela propriedade são moradores da Aldeia Rio da Várzea. O contato com os familiares que ficaram por lá é garantido nas horas vagas por meio do WhatsApp e do Facebook. Só não dá mesmo para matar a saudade da comida de casa.
– Para nós, toda comida é diferente. Aqui não tem nossa comida, a gente aqui come carne de gado, porco, galeto... comida italiana. É bem boa, mas a gente prefere a nossa, com certeza. Lá na aldeia, nós comemos folhas do mato, uma comida mais natural – conta Aldori.
Muitos indígenas vêm trabalhar na vindima Serra por não haver muita possibilidade de emprego em sua terra natal. Aldori, por exemplo, sonha em um dia conquistar uma ocupação fixa.
– Quando termina aqui, voltamos para casa e ficamos parados por sete meses até a colheita de laranja começar. Neste tempo, vendemos artesanato. Vamos para outras cidades, pelas praias – explica.
Mesmo sem cogitar a ideia de abandonar a aldeia onde vive, Aldori diz que gostaria de visitar a Serra mais vezes, já que o trabalho como safrista da uva faz a diferença para ele.
– A maioria prefere colher uva do que estar em outro serviço, é um serviço bom e a gente ganha bem. Uma pena que é só uma vez por ano, se fosse mais tempo seria melhor. Todo mundo adora trabalhar aqui nesse local – elogia ele.
Da capital para a colônia
Apesar do sobrenome de origem italiana, Dhionatan Benvenutti, 22 anos, não conhecia a região da Serra até este ano, quando veio trabalhar como safrista numa propriedade em Monte Belo do Sul. Ele mora em Porto Alegre.
– Nem sabia que existia negócio de uva assim para tirar – diz.
O jovem veio a convite de familiares que trabalharam na propriedade no ano passado. No início, achou um pouco difícil, mas logo aprendeu a manusear a tesoura no corte dos cachos.
– Foi puxado só nos primeiros dias, depois o cara acostuma e fica normal. A parte ruim é ficar longe da família, mas aqui tem uma família nova que ocupa o espaço – compara.
Dhionatan vive com a esposa e se considera uma pessoa caseira, que gosta de ver filmes nas horas vagas. Apesar da personalidade mais pacata, ele conta que ficou muito impressionado com a calmaria presente na colônia.
– O lugar é muito lindo, tudo diferente. Nossa, aqui nem se escuta barulho de carro, nem nada – observa.
Outra diferença percebida pelo safrista da Capital é com relação ao tratamento entre as pessoas da região.
– A melhor parte do trabalho são as pessoas novas que o cara conhece. Aqui, o pessoal é muito diferente do pessoal de Porto Alegre. Eles têm um jeito mais amigável, todo mundo passa e dá um oi – aponta, garantindo que pretender voltar nas próximas vindimas.
A safra como campo de pesquisa
No dia 10 de fevereiro, antes de pegar a estrada em Frederico Westphalen, no norte do Estado, rumo aos parreirais da família Pedrotti, em Bento Gonçalves, Matielo Barboza, 25 anos, enfrentou duas provas do curso de Agronomia. Ele está no oitavo semestre e considera o trabalho como safrista uma ótima oportunidade para entender mais sobre os assuntos que povoam seus estudos.
– Além do ganho extra, é uma forma de aprendizado pelo ramo que vou seguir. A gente estuda em livros, artigos, mas não ao vivo, na realidade. Em texto é uma coisa, mas pegar a prática é totalmente diferente – justifica.
Ele integra a mão de obra safrista composta por jovens que pretendem investir seu futuro profissional no ambiente rural. No caso de Matielo, o gosto pela área vem do contato com as lavouras de soja da família. Decidido a seguir no agronegócio, ele se formou técnico em Agropecuária e fez estágio numa fazenda de grão na Bahia, antes de entrar para o curso de Agronomia. Já o estágio de conclusão de curso, ele pretende fazer em solo serrano.
– Esse trabalho me trouxe experiência e me interessa fazer estágio aqui, é uma cultura boa de trabalhar– elogia.
Trabalhando na vindima da propriedade dos Pedrotti pela terceira vez, Matielo elogia também a hospitalidade da família, incluindo as delícias oferecidas no almoço e na janta.
– A comida é boa e farta, não tem o que reclamar. O acolhimento deles é bem grande. A gente se sente em casa aqui – elogia.