Antes de começar a assistir A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey's Blues Bottom), é bom saber que o filme que estreou na última sexta-feira, produção original da Netflix, não se propõe a ser uma cinebiografia convencional, que narre a trajetória de uma personagem com começo, meio e fim. A obra se concentra em uma sessão de gravação da cantora Ma Rainey (1886-1939), considerada a primeira estrela entre as vozes femininas do blues, e nos dramas pessoais - permeados pela realidade social - da protagonista e dos membros da banda de apoio, todos negros vivendo num país já livre da escravidão, porém muito marcado por suas sequelas.
Adaptação de uma peça de teatro escrita por August Wilson, A Voz Suprema leva para a tela muito da atmosfera teatral, especialmente nas falas - com espaço para alguns longos monólogos - e na dramaticidade que dá às pequenas tragédias contornos épicos. É neste aspecto que se pode destacar - como a crítica especializada tem feito - as atuações da atriz Viola Davis, no papel da cantora, e de Chadwick Boseman, que interpreta o trompetista Levee, jovem ambicioso que sonha em ter sua própria banda, enquanto lida com os próprios demônios. É o último papel de Boseman, que faleceu em agosto deste ano, vítima de câncer.
Dona de uma das vozes mais poderosas de seu tempo, Ma Rainey também foi conhecida pela personalidade forte e pela bissexualidade que nunca escondeu - e até cantou em algumas músicas. As relações de poder entre a artista e os produtores do estúdio - todos brancos -, e também entre estes e os demais músicos da banda, rendem algumas das cenas mais emblemáticas, que permitem entender, afinal, qual a mensagem do filme - já que não se trata, como disse anteriormente, de uma biografia (pouco se diz sobre de onde veio ou para onde foi Ma Rainey).
Além das atuações memoráveis e da trilha sonora perfeita para os amantes do blues, também é mérito do filme reconstruir a Chicago dos anos 1920, destino de milhares de negros que deixaram o Sul rural em busca de melhores oportunidades na cidade industrial - semente que fez brotar a contundente cena musical que anos depois legaria ao mundo o blues elétrico, pedra fundamental do rock 'n' roll. E ainda há boas doses de sensualidade e bom humor (ou não se estaria falando blues da maneira correta).
Mistura de realidade e ficção, de cinema e teatro, A Voz Suprema do Blues é uma obra de arte e como tal deve ser interpretada: subjetiva, autoral, dramática. Vale também como bom entretenimento e como triste e bela despedida a um ator que deixou para o seu último trabalho uma atuação primorosa, para nos encher de saudade.