Em tempos de Feira do Livro, nada melhor do que dicas de leitura. Convidamos o patrono da 36ª edição da maior festa literária de Caxias do Sul, Dinarte Albuquerque Filho, para listar alguns dos seus livros favoritos. O poeta recomendou um livro para cada mês do ano, e ainda contou um pouquinho sobre cada obra. Confira:
CAPRICHOS E RELAXOS, de Paulo Leminski
O livro foi uma espécie de norteador, não só para novas leituras como também para a dedicação à escrita. Quando comprei, já era a 3ª edição da Brasiliense, que nos anos 80 foi uma das mais expressivas casas editoriais do país. Em “Caprichos e Relaxos”, Leminski sintetiza um novo fazer poético, identificado como “poesia marginal”, “poesia alternativa”, “geração mimeógrafo” e outros quetais, na expressividade da palavra como representação de uma época. Mas, além da leitura acadêmica ou crítica, o que há no livro é a sensação de que a palavra pode ser livre sem ser corrompida. E Leminski, além de fazer a “sua” poesia, foi generoso ao indicar caminhos para a leitura de outros poetas, principalmente os haicaístas – sobretudo Bashô.
POEMA SUJO, de Ferreira Gullar
Ganhei de aniversário de uma colega de faculdade. Até então, só havia lido trechos/poemas esparsos. Depois, tornou-se mais uma referência, quase ao mesmo tempo em que os livros dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Gosto do tom político que Gullar usa sem se tornar panfletário, do tom político não reduzido à “política”. Gosto da disposição gráfica da palavra e do encadeamento das sensações e imagens que ele constrói em versos que não dão sossego ao leitor.
OS RATOS, de Dyonélio Machado
Na maior parte das vezes correndo por fora da lista dos grandes nomes da literatura feita no Rio Grande do Sul, o modernista de Quaraí transforma a história comum de Naziazeno em um grande romance urbano, concentrado em poucas páginas. O tempo da narrativa – 24 horas – parece corresponder ao tempo real, tamanha a angústia da narrativa, que é pura crítica à sociedade e às instituições públicas. Voltou a ser lido (?) a partir do momento em que foi lembrado nas listas de vestibulares, o que já é um alento.
A MÁQUINA DO MUNDO REINVENTADA, de Haroldo de Campos
A partir de Haroldo, rendo-me à poesia concretista, de invenção, simbolista, barroca, futurista... daqui ou em qualquer outro idioma. Haroldo articula a ideia poética de tal forma que eleva a palavra à categoria de arte, mas sem perder de vista o estado poético dela. Leio este livro e nunca chego ao fim, até porque ele encerra o longo poema com um verso que significa o nascer e morrer – de forma cíclica e infinita. Microcosmo e macrocosmo, enigmas divinos e terrenos, cosmogonia e cosmologia, Dante e Einstein e uma série de outras referências e inferências. Um livro para ler nestes tempos em que o tempo parece suspenso.
A TEUS PÉS, de Ana Cristina César
Há quem olhe terno, há quem olhe torto, mas a poesia de Ana C. não é apenas “um diário” de uma jovem rica de Copacabana, como muitos dizem ao pretender reduzir a força de sua palavra. Em Inventário das Sombras, José Castello situa Ana Cristina César como “uma personagem do século 19 que viveu no século 20” e que se jogou pela janela do seu edifício. Mas, além disso, Castello oferece uma visão mais tranquilizadora para aqueles que leram e nada entenderam de A teus pés ou Inéditos e dispersos: “A boa moça, deixando de lado seus boletins, seus caderninhos e suas luvas de pelica partia para deixar a poeta maldita em seu lugar.” Não é preciso ler Castello (embora, de forma geral, seja aconselhável), mas é preciso ler Ana C., é preciso descobri-la por trás da imperturbável poesia que ela deixou em tão pouco tempo de vida.
POEMAS, de Emily Dickinson (Tradução de Idelma Ribeiro de Faria)
A poeta solitária escreveu sobre a solidão da humanidade praticamente sem conhecer o mundo ao seu redor. Em sua solidão – via, da janela, um cemitério e as margens do Rio Connecticut – apreendia determinados aspectos da vida que a cacofonia coletiva impede de ser notada. Mesmo sozinha, apaixonou-se e encontrou na poesia uma maneira de resolver suas paixões. Às vezes é de uma tristeza de cortar o coração, mas também eleva o espírito às altas paragens com os mecanismos que só um poema dispõe.
SOL E AÇO, de Yukio Mishima (Tradução de Paulo Leminski)
Escritor, camicase, escritor-camicase. Neste livro, a disciplina dos guerreiros de um Japão que perdia seus hábitos milenares, transmitidos no Bushi-dô, para a ocidentalização. Documento de vida e de princípios de um homem contraditório, que trocou a vida por um ideal e que deixou escrito: “Palavras são um recurso que reduz a realidade a uma abstração que nossa razão possa aceitar, e em seu poder de corroer a realidade, inevitavelmente insinua-se o perigo de que as próprias palavras também sejam corroídas.” Um narcisista que vivia o coletivo acima de tudo e via o mundo em que ele acreditava se desmoronar, simplesmente. Antes de Mishima, Bashô escrevera: “Não sigam as pegadas dos antigos. Procurem o que eles procuraram.” Quando Mishima procurou e não encontrou mais, abandonou a busca.
CEM ANOS DE SOLIDÃO, de Gabriel Garcia Márquez (Tradução de Eliane Zagury)
O livro é de 1967, mas a solidão dura mais tempo. O livro rompe com os escudos que impomos a partir dela. Um livro para pensar a história da América Latina, da qual muitos brasileiros fazem de conta que não fazem parte. Livro de um tempo em que havia um pensamento libertador que muito poderia ser útil nos dias de hoje, em que o passado teima em se fazer presente e nubla o futuro. A leitura de Cem anos... aproximou-me de uma cultura que ainda hoje parece exótica ou subalterna, e, tanto ou mais do que isso, acentuou o poder da palavra e da ficção sobre a realidade e a condição humana.
CRIME E CASTIGO, de Fiódor Dostoiévski (Tradução de Paulo Bezerra)
Bah! Um livro lido e translido, em momentos de tranquilidade e também em momentos não muito confortáveis. Mas sempre uma leitura apaixonante e, por isso mesmo, perturbadora – afinal, paixão não rima com paz. É uma leitura para desacomodar a consciência, para fazer pensar sobre a humanidade e suas maneiras de lidar com a miséria, manifesta de formas diferentes. A construção psicológica do personagem Raskolnikov o torna tão palpável que parece que podemos encontrá-lo ao sair de casa. Me senti cansado ao fim do livro, em todas as leituras que fiz, mas também sei que não tem como não retornar a ele de tempos em tempos.
AS CIDADES INVISÍVEIS, de Ítalo Calvino (Tradução de Diogo Mainardi)
Calvino é outro mágico com as palavras. Este não foi o primeiro livro dele que li (foi com Os amores difíceis que passei a acompanhá-lo), mas dou o destaque pela temática, que é relevante para minha escrita. A riqueza de imagens é uma constante na prosa de Calvino; particularmente, neste livro, deixa o leitor com vontade de visitar cada esquina das cidades que ele descreve. “A cidade e os símbolos 5”, “As cidades contínuas 2”, “As cidades e os olhos 2”, “As cidades e os olhos 4” são alguns motivos para a releitura.
A SERVIDÃO HUMANA, de Somerset Maugham (Tradução de Antônio Barata)
Um livro sobre o sentido da vida. O personagem, Philip, busca, entre outras coisas, a verdade, e, nela, a sua identidade. Entre a razão e o coração, como muitos de nós, ele encara suas frustrações, seus sonhos, seus medos e suas fraquezas. Romance filosófico, sem ter a pretensão de resolver os problemas da humanidade, nos indica um lugar no mundo, este mundo que nos oferece todos os tipos de relações, das mais tóxicas às mais libertadoras.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, de Machado de Assis
Inteligência e bom humor podem resumir este romance do escritor carioca. Os argumentos de que seus livros são difíceis de ler caem por terra já na sinopse do romance. Machado conta a história de um defunto autor, Brás Cubas, que, de forma irônica analisa sua vida: o que fez e o que deixou de fazer. Ao ler pela primeira vez essa narrativa de Machado, lembro de ter dado muitas risadas e nem ter me dado conta do tempo. A partir de Memórias póstumas de Brás Cubas o acesso aos outros textos machadianos se tornou mais prazeroso. E em cada um deles, a garantia de uma literatura feita com bom humor e inteligência. Ah, e também elegante, no que um texto pode ser assim considerado.