O mundo, para o poeta Dinarte Albuquerque Filho, é desvelado em preto & branco. É como se as cores desvirtuassem o seu olhar. Para Dinarte, essa sutileza monocromática, que transita cinzenta, flertando ente o branco e o preto, é o tom da cor da urbanidade. Seus poemas brotam desse asfalto que tem suas fissuras por causa da ação do tempo. Dinarte é o cara que vive a cidade, caminha por entre as suas ruas, mesmo quando é densa a madrugada. Seu mais recente livro Fissura no asfalto, lançado pela Liddo Editora, é extrato dessa sua jornada urbana, silenciosa e solitária, quando muito, acompanhada de lembranças e músicas, tragando um cigarro amargo.
silêncio
q dizer,
ninguém dizia
nada
a palavra
encalacrada
a boca
como q lacrada
No apartamento onde mora o poeta, há tantas reminiscências pairando no ar quanto livros e HQs e discos e revistas e jornais. Há na estante principal —, que fica no cômodo onde também acaba por ser seu QG, onde senta-se diante do computador para lidar com suas tessituras em versos —, exemplares de seus primeiros livros de poesia e, também, o incensado Leminski, o samurai malandro (EDUCS, 2009). O livro sobre Leminski é fruto do seu mestrado em Literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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Sua estreia como poeta ocorreu com Romã (1991, com Fátima Jeanette Martinato). Quatro anos mais tarde, com Um olhar sobre a cidade - e outros olhares (1995), Dinarte revelava-se não apenas em tom cinzento, misturando fotos em preto & branco, mas experimentava discorrer sua poética por meio da estética concretista. Porque é como se cada poema tivesse uma forma e precisasse se espalhar pela página de uma forma diferente.
Talvez seja a personalidade do poema? Nem Dinarte sabe. O certo é que, Fissura no asfalto acompanha essa mesma verve de Um olhar, em que cada poema se apresenta de uma forma diferente, mais uma vez “conversando” com a fotografia. Como escreve o poeta em Oblívio, que verte de uma das tantas fissuras desse asfalto que tem fotos de Mário André Coelho:
não tenho lembranças
da infância
q não tenham dor
não tenho lembranças
q não tenham dores
As fotografias de Mário André, amigo de longa data do poeta, de convivências através da noite veloz dessa cidade que é Caxias do Sul, não apenas ilustram o livro, mas foram incorporadas como mais uma camada de leitura para os versos. Aliás, as fotos foram recortadas e manipuladas por outro amigo de longa travessia, o designer Ernani Carraro, encarregado do projeto gráfico e da capa.
Essa vertigem madrugada adentro, seja transitando pela cidade, silenciosa, seja observando o movimento através da janela, é o substrato da poesia de Dinarte. Mas, enquanto Um olhar sobre a cidade, discorre em poesia as cenas que assiste, como um repórter atento e observador:
nestes bares
os lares
q nunca tive
os pesares
q absorvi
os temores
q reciclei
amores
q aniquilei
nestes bares
a vida me escapa
quando o gelo derrete
Em Fissura no asfalto, o poeta, além de manter a cidade como cenário da sua obra, e descrever as cenas que observa, nos propõe um mergulho mais incisivo e reflexivo.
há quem olhe torto
há quem olhe terno
quem olha
enxerga o que vê
mas
será
q sente
o q?
O título da obra sugere diversos significados, reconhece Dinarte. Não só as rachaduras do
asfalto, mas a ansiedade que é, de certa forma, uma reação natural de quem vive em centros
urbanos, bem como da anorexia de sentidos de grande parte das pessoas, meio que
anestesiadas por essa fissura de vida. O poeta me disse isso, pelo telefone, no meio dessa
pandemia que nos afasta ainda mais uns dos outros. Assim que desliguei, voltei a reler Fissura no asfalto. Só depois dessa nova pista compreendi o que o poeta queria dizer, quando escreveu:
DOEI MEUS OLHOS
PARA UM DESCONHECIDO
MAS NÃO O OLHAR.
(…)
DOEI MINHAS PERNAS
PARA UM DESCONHECIDO
MAS NÃO O CAMINHAR.
(…)
DOEI MINHAS MÃOS
A QUEM NÃO TINHA BRAÇOS
MAS NÃO
AS PALAVRAS
(…)
DOEI-ME DE CORPO INTEIRO
VÁRIAS NOITES
ALGUNS DIAS
(…)
DOEI MINHA ALMA.
Numa primeira lida, os versos acima podem soar taciturnos. Mas para além da vaguidão em longas madrugadas, o poeta revela que, apesar de ter doado sua alma para mais esse livro, como em tudo que sempre faz, ainda tem na manga O OLHAR, O CAMINHAR e AS PALAVRAS.
Afinal de contas, é disso que a poética de Dinarte é feita. Do olhar sobre a cidade, sobre sua vida e a dos outros, mas também desse caminho por onde andam tantas reminiscências e, de palavras, que ressoam em versos ora ácidos, letárgicos ou melancólicos, mas sempre nos brindando com miradas através de paisagens poéticas.
pra começar
espero q entendas o silêncio
sob ele uma batalha
nenhuma falha ou dissidência;
pra terminar
eu continuo, paciente
e silente, diante do abismo.
Obras do autor
Fissura no Asfalto (Liddo, 2019/2020)
Leituras na Madrugada (Liddo, 2014)
Leminski, o “samurai-malandro” (EDUCS, 2009)
3, com Odegar Júnior Petry e Fabiano Finco (Liddo, 2005)
Um olhar sobre a cidade e outros olhares (ed. do autor, 1995)
Romã, com Fátima Jeanette Martinato (ed. dos autores, 1991).
Antologia poética
Misterioso Sul (Elos do Conto – Edição e Arte, 2018)
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