"Criativo e resistente". Foi assim que a cineasta, e uma das homenageadas deste ano, Laís Bodanzky definiu a edição 48 do Festival de Cinema de Gramado, encerrada no sábado. A definição também pode ser estendida à própria produção cinematográfica contemporânea brasileira, que enfrenta não só a aspereza histórica de uma pandemia como a violenta extinção de incentivos em mecanismos públicos federais. Ao realizar uma edição exclusivamente digital — com os filmes sendo exibidos pelo Canal Brasil — Gramado se garante no posto de festival ininterrupto mais antigo do Brasil, além de reforçar sua missão de ser vitrine para as produções brasileiras e latinas recentes.
Os kikitos de melhores filmes (curtas e longas brasileiros e longas latinos) foram entregues neste sábado (26), com transmissão online via televisão e redes sociais. O vencedor do prêmio mais aguardado da noite foi King Kong en Asunción, longa pernambucano dirigido por Camilo Cavalcante. O trabalho narra a jornada pessoal de um matador de aluguel em fim de carreira, personagem cuja performance sensível rendeu kikito póstumo de melhor ator a Andrade Júnior — ele morreu no ano passado. O trabalho é uma coprodução entre Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina, o que acaba também celebrando a vertente latinamente agregadora do festival.
— Tá provado nesta pandemia que sem arte a gente não suporta o peso da vida. E muitas vezes a arte é para a gente refletir sobre o peso da vida também — disse o diretor, que discursou no formato vídeoconferência, assim como os demais principais premiados da noite.
Outro exemplo da "criatividade e resistência" do cinema brasileiro atual, o experimental Aos Pedaços conquistou os prêmios de melhor direção e fotografia. Aos 89 anos, o diretor Ruy Guerra foi o responsável pelo discurso mais político da noite:
— Não posso deixar de falar dessa escuridão que estamos vivendo, onde estão sendo dizimados populações indígenas e quilombolas. (...) Já não bastava a pandemia para termos que sofrer ainda essa avalanche de destruição que estamos vivendo nas artes, na ciência e no próprio povo brasileiro.
A questão da representatividade, que tem sido pauta nas edições mais recentes de festivais de cinema no mundo todo, também ganha espaço em Gramado. Este foi um ano com bastante diversidade (de gênero, de raça, de identidade cultural) entre os realizadores. Vale lembrar que o grande vencedor da noite tem narração em idioma indígena. Outro destaque nesse sentido foi o vencedor de melhor curta brasileiro, O Barco e o Rio, representante da produção cinematográfica amazonense que há 20 não tinha inserção em Gramado.
— A gente se sente meio isolado aqui em Manaus, no meio da floresta, a gente acha às vezes que não pode fazer filme pois estamos longe do centro. Que esse prêmio sirva de inspiração para as pessoas saberem que podemos sim fazer cinema no Amazonas e sobre o Amazonas. E que essas narrativas podem reverberar para lugares tão distantes, como é por exemplo Gramado — disse Bernardo Ale Abinader, que também levou o prêmio de melhor direção em curta brasileiro.
Já o kikito de melhor ator em curta nacional foi entregue a Daniel Veiga, por sua atuação em Você Tem Olhos Tristes. Daniel é um homem trans.
— Quero oferecer esse prêmio, sobretudo, aos artistas trans e dizer "valorizem a arte trans, nós podemos trabalhar com isso, nós estudamos para isso, nós nos dedicamos ao nosso ofício" — disse o ator.
Se o formato inovador fez da 48ª edição do Festival de Cinema Gramado histórica, a abrangência de discursos e linguagens exibidos ao longo dos nove dias de programação foi capaz de demonstrar a força de um setor que realmente amplia capacidades de criatividade e resistência.
Confira a lista completa de vencedores
Longa-metragem Brasileiro – LMB
Melhor Filme – King Kong en Asunción
Melhor Direção – Ruy Guerra, por Aos Pedaços
Melhor Ator – Andrade Júnior, por King Kong en Asunción
Melhor Atriz – Isabél Zuaa, por Um Animal Amarelo
Melhor Roteiro – Felipe Bragança, por Um Animal Amarelo
Melhor Fotografia – Pablo Baião, por Aos Pedaços
Melhor Montagem – Eduardo Gripa, por Me Chama Que Eu Vou
Melhor Trilha Musical – Salloma Salomão, por Todos os Mortos e
Shaman Herrera, por King Kong en Asunción
Melhor Direção de Arte – Dina Salem Levy, por Um Animal Amarelo Melhor Atriz Coadjuvante – Alaíde Costa, por Todos os Mortos
Melhor Ator Coadjuvante – Thomás Aquino, por Todos os Mortos
Melhor Desenho de Som – Bernardo Uzeda, por Aos Pedaços
Prêmio Especial do Júri: Elisa Lucinda, por Por que você não chora?
Menção Honrosa do Júri: Higor Campagnaro, por Um Animal Amarelo
Longa-metragem Estrangeiro – LME
Melhor Filme – La Frontera
Melhor Direção – Mariana Viñoles, por El gran viage al país pequeño
Melhor Ator – Anibal Ortiz, por Matar a un Muerto
Melhor Atriz – Daylin Vega Moreno (Diana), Sheila Monterola (Chalis), por La Frontera
Melhor Roteiro – David David, por La Frontera
Melhor Fotografia – Nicolas Trovato, por El Silencio del Cazador
Prêmio Especial do Júri: El Gran Viaje al País Pequeño
Longa-metragem Gaúcho – LMG
Melhor Filme – Portuñol, de Thaís Fernandes
Curta-metragem Brasileiro – CMB
Melhor Filme – O Barco e o Rio
Melhor Direção – Bernardo Ale Abinader, por O Barco e o Rio
Melhor Ator – Daniel Veiga, por Você tem olhos tristes
Melhor Atriz – Luciana Souza, Inabitável
Melhor Roteiro – Inabitável, Matheus Farias e Enock Carvalho
Melhor Fotografia – O Barco e o Rio, para Valentina Ricardo
Melhor Montagem – Você tem olhos tristes, para Ana Júlia Travia
Melhor Trilha Musical – Atordoado, eu permaneço atento, para Hakaima Sadamitsu, M. Takara
Melhor Direção de Arte – O Barco e o Rio, para Francisco Ricardo Lima Caetano
Melhor Desenho de Som – Receita de Caranguejo, Isadora Torres e Vinicius Prado Martins
Prêmio especial do júri: Preta Ferreira, por Receita de Caranguejo
Júri Popular
Curta Brasileiro: O Barco e o Rio, de Bernardo Ale Abinader
Longa Estrangeiro: El gran viaje al país pequeño, de Mariana Viñoles
Longa Brasileiro: King Kong en Asunción, de Camilo Cavalcante
Júri da Crítica
Curta Brasileiro: Inabitável
Longa Estrangeiro: El Gran Viaje al País Pequeño
Longa Brasileiro: Um animal amarelo