A campanha De Manta e Cuia (veja clipe abaixo), da RBS Serra, saúda o inverno investigando a poesia dos trabalhos manuais. As mãos são a primeira parte do corpo a sentir o frio logo de manhã e às vezes parecem até mesmo congelar, mas o clima rígido da região não impede que elas também sirvam de ponto de partida para criar e transformar. Alguns trabalhos artesanais, inclusive, ganham ainda mais evidência nesta época, emprestando poesia e suavidade à estação que mais caracteriza a região. Mesmo em tempos de distanciamento social e do frio castigando as paisagens, existe vida e renovação brotando diariamente das mãos de quem coloca um pouquinho de si em cada criação artesanal.
Em Bento Gonçalves, na localidade de Tuiuty, o agricultor Diego Tomasi (na foto acima), 37 anos, trabalha de segunda a segunda acompanhado, geralmente, das baixas temperaturas de julho e agosto. Assim que os primeiros raios de luz apontam no céu, ele parte para a minuciosa jornada da poda das videiras. O cenário ao redor dele demonstra a ação do inverno na plantação de uvas, não há folhas, nem frutos, nem cor. Mas as mãos de Diego seguram uma tesoura especial que ele aprendeu a manusear ainda na adolescência. Com pequenos e certeiros cortes, a poda será responsável por uma bem-sucedida colheita quando o verão vier.
– Se tu não faz uma boa poda, provavelmente não vai ter uma boa brotação. Tem vários fatores, mas tudo começa com uma boa poda – ensina o agricultor, que vende a maior parte das uvas que colhe à Vinícola Salton.
Diego diz preferir o frio ao calor para trabalhar na poda. Quando as temperaturas castigam demais, ele dá uma fugidinha para um dos refúgios mais requisitados nesta época entre os moradores da Serra.
– O fogãozinho a lenha está sempre aceso. Entro em casa e vou direto para o fogão – diz ele.
Apesar de não ser tão popular quando a colheita – que há tempos virou atração turística na região – a poda é um ofício cheio de delicadeza e que carrega muito da expertise dos agricultores. Parece fácil para quem olha, mas há diversos detalhes envolvidos no trabalho. Por exemplo, cada variedade da planta requer um tipo de poda diferente. Conforme Diego, nas uvas mais comuns, utilizadas principalmente para a produção de sucos, são podados os brotos que nasceram durante o ano. Já nas viníferas, utilizadas para vinhos e espumantes finos, é feita a poda sempre mantendo um ramo com cerca de 20 centímetros que foi deixado no ano anterior. Cuidados que serão retribuídos com a chegada da fruta mais querida da região, assim que a estação mais quente vier.
Diego não descuida da poda nem enquanto dá entrevista. Por telefone, é possível ouvir o barulhinho incessante da tesoura que ele manuseia, visitando um a um dos galhos presentes nos sete hectares da propriedade da família. O trabalho não é fácil, mas vem carregado de significado. Afinal, as mãos do agricultor transformam o solo, garantem fertilidade e colheita. No caso da poda das videiras, é um trabalho que confere um importante significado de renovação ao período do inverno. Afinal, brotar para algo melhor é o que todo mundo almeja, certo?
– É renovação. Tem variedades que é só cortar um galho dormente, sem folhas, e daqui a 30, 40 dias já tem uma folhinha verde, é como se fosse um renascimento da videira. Acho que tem a ver mais ou menos com o momento que estamos vivendo, estamos todos meio parados agora, mas logo tudo vai começar a voltar – comenta Diego, fazendo referência ao cenário experimentado durante a pandemia.
Um abraço quentinho
Outro trabalho bastante delicado que ganha ainda mais destaque durante o inverno vem das mãos talentosas das tricoteiras. Angie Finkler, 41 anos, teve uma carreira dedicada à advocacia, mas resolveu investir nas linhas e agulhas para se encontrar quando perdeu o emprego.
– Neste período, coincidentemente, eu passei por uma crise pessoal dessas que a gente pensa “quem eu sou, de onde vim e para onde vou?”. Eu estava próxima de fazer 40 anos e tive uma menopausa precoce, juntou tudo e eu queria me entender. Fiz terapia e, dentro disso, surgiu um apontamento para trabalhos manuais. Aí entrou o tricô – lembra ela.
Na verdade, o tricô já havia “entrado” na vida dela muito tempo antes. Desde pequena, Angie observava a dança mágica dos fios entre os dedos da mãe, Antonia. O conhecimento foi passado em casa e, hoje, se transformou em negócio. A marca de tricô artesanal leva o nome de Angie, mas na verdade concentra saberes de mãe e filha num ofício que acabou por conecta-las ainda mais.
– Minha mãe é solteira, e sou filha única. Então, a gente sempre teve os laços muito enraizados. Na terapia, consegui cortar o famoso cordão umbilical, mas o tricô nos aproximou de uma forma mais madura. Não vejo mãe e filha conversando quando a gente fala sobre tricô, eu vejo duas mulheres. É um trabalho que nos aproximou como mulheres – comenta Angie.
Mesmo que as peças que produzem sejam, geralmente, realizadas a quatro mãos, Angie conta que gosta de tricotar sozinha. O momento favorito do dia é cedinho da manhã, acompanhada de um bom som no fone de ouvido (a playlist vai de música clássica a rock pesado).
– O tricô me deixa introspectiva. Eu não consigo tricotar numa roda de pessoas, gosto de tricotar quieta. Para mim, é uma viagem, porque eu resolvo todos os meus problemas, consigo encaixar as peças dos quebra-cabeças, é um momento muito meu, de meditação. Me sinto próxima de Deus quando estou tricotando – diz Angie.
Para ela, o trabalho artesanal carrega significados que se conectam diretamente ao momento da criação de cada peça:
– É uma arte muito especial porque tu coloca tudo que tem de melhor ali. Se é uma encomenda que eu sei para quem é, nossa, eu mando tanta coisa boa. No meu mundinho, eu viajo em tantas coisas legais que aquela peça vai carregada de energia. Isso não tem preço, tricotar para alguém, é impagável.
Em tempos de distanciamento social, as peças de tricô artesanal ganham uma função ainda mais nobre. Não são somente capazes de aquecer durante os dias mais frios e solitários, conseguem ainda oferecer algo do qual todos nós estamos com saudade: abraço.
– Desperta primeiro o carinho, porque como é uma atividade antiga, quando se remete à infância, é muito comum que a gente tenha boas lembranças. Quando tu coloca uma peça, e a gente cuida muito com a textura do fio, esse fio te dá aquela sensação de aconchego. O tricô consegue, de fato, te abraçar – argumenta Angie.
Aquecendo a solidariedade
As tramas do tricô também dão origem a uma característica muito nobre, facilmente encontrada em quem se dedica ao ofício: a solidariedade. No inverno, não é raro que escutemos histórias sobre pessoas que tricotam peças com o intuito de esquentar quem não tem agasalhos para enfrentar a aspereza do clima. A professora aposentada Laurita Virginia Pozzi Cavagnolli, 75 anos, faz parte desse time. Ela aprendeu a tricotar muito jovem, e sempre se utilizou do hobby para presentear familiares e amigos com peças feitas à mão. Neste momento de pandemia e distanciamento, a moradora de Flores da Cunha resolveu colocar o talento artesanal a serviço de quem mais precisa. Recentemente, Laurita produziu 80 toucas, posteriormente entregues a moradores do Lar da Velhice São Francisco de Assis, em Caxias.
– Tinha bastante gente se envolvendo na coleta de alimentos, mas pensei “os vovôs devem sentir bastante frio também” – argumenta a aposentada.
Motivada pela vontade de ajudar, Laurita passou a produzir as peças pensando em entregá-las o quanto antes, afinal, o frio não costuma dar trégua para quem atravessa o inverno na Serra.
– Quando acabou a lã, eu tinha várias peças em casa que não eram mais usadas, fui desmanchando e reaproveitando os fios. Quis fazer bem colorido, para passar alegria também – diz.
Por conta da pandemia, a tricoteira não pode participar da entrega das peças, mas já trabalha na confecção de novas. Desta vez, está tricotando meias e mantas.
– Me sinto feliz em ajudar, é um carinho à distância.
Afeto misturado com farinha
Assim como uma peça de tricô feita à mão, um delicioso prato de comida preparado artesanalmente também consegue transmitir carinho e aconchego. Durante o inverno, a cozinha se transforma no lugar preferido da casa, principalmente se houver algo gostoso sendo preparado ao fogo. A caxiense Carmen Gollo, 70 anos, aprendeu a fazer massas observando as habilidades – e segredos – da avó e da mãe. A descendência italiana da família esteve sempre muito ligada à forma como Carmen reconhece o valor de uma refeição preparada com zelo e capricho.
– Os italianos não tinham muito afeto, de abraçar, beijar, dizer eu te amo. Mas eles faziam comida. Lembro da minha mãe, quando chegava alguém, a pessoa nem sentava e ela já queria servir alguma coisa. Então, aprendi que uma forma de mostrar amor é fazer uma comida bem caprichada para aquela pessoa. Me lembra acolhimento, carinho – diz Carmen.
A relação dela com as massas artesanais é tão especial que o hobby se transformou em profissão. Como trabalha com a organização de festas e formaturas, setor que agoniza neste momento de distanciamento social, a caxiense decidiu se reinventar profissionalmente. Ela começou a vender tortéi, ravióli e canederli (pequenas bolinhas utilizadas para fazer sopa), receitas tradicionais que há anos faziam sucesso entre familiares e amigos. Baseada num conhecimento familiar centenário, nasceu a marca Pasta di Monte Magrè, nome que homenageia a localidade vêneta onde o avô de Carmen nasceu.
As embalagens de massa que a marca comercializa chegam na casa dos clientes com os seguintes recados: “feito como antigamente” e “cozinhar é um ato de amor”. O tortéi é a receita mais famosa de Carmen, da qual ela se enche de orgulho ao falar sobre cada detalhe cuidadoso no processo de preparo.
– Sou muito exigente com os ovos, eu só quero os de galinha solta, acho que eles têm outra energia. A massa fica amarela, quase laranja, não tem nada de outras coisas, é só ovo e farinha. A massa do tortéi precisa ser bem fininha também. Ali onde tu dobra o triângulo, a massa fica dupla, então, eu passo um por um na máquina de afinar para que fique na mesma grossura da parte de cima. É extremamente artesanal, tudo feito como antigamente – detalha ela.
Carmen é tão exigente com as massas que produz, que já as entrega cozidas, no ponto certo. É só esquentar em banho-maria e aproveitar o sabor.
– Faço assim porque se a pessoa cozinhar a mais ou a menos vai estragar minha massa (risos).
Tanto cuidado se justifica mesclando elementos como memória, tradição e afeto. Quando serve uma massa preparada com calma e artesanalmente, Carmen está celebrando sua própria história, e a passando adiante.
– O tortéi tem um significado de amor. Eu acho que cozinhar é um ato de amor. Então, a gente sempre tem aquela âncora, a comida, as pessoas ao redor da mesa, uma união, uma comemoração e relembrando as massas que elas (mãe e avó) faziam. É ao redor de uma mesa que a gente reconhece a presença e a ausência das pessoas. Então, traz muito significado para mim – revela.
Para Carmen, não somente as massas, mas qualquer trabalho artesanal feito com apreço costuma oferecer “felicidade empacotada” às pessoas.
Fogo e ancestralidade
O fogo é elemento muito presente no inverno, seja em lareiras, fogões a lenha e afins. É também por meio dele que trabalhos extremamente artesanais como o da cerâmica são forjados. Moradora de Caxias do Sul, Ana Júlia Poletto, 45 anos, é uma das profissionais que busca uma conexão mais primitiva com o ofício.
– A cerâmica tem a parte que pode ser feita pelo torno mecânico, daquela cena famosa do filme Ghost (risos), mas a parte que eu mais gosto é a mais manual, um trabalho que desenvolve um pouco do que chamam de técnica ancestral. Remete a todo um trabalho, por exemplo, dos africanos, dos indígenas – contextualiza Ana.
Entre as novidades que surgiram das mãos dela recentemente, estão as panelas – coleção que batizou de Amélias. A criação acabou por unir a paixão pela cerâmica com o interesse pela cozinha, que levou Ana a cursar a faculdade de Gastronomia na UCS. Com as panelas, a ceramista acabou por conceder significado duplo à ação do fogo.
– A cerâmica tem essa conexão com o fogo porque a argila só se transforma depois de passar por todo processo de cozimento do barro. A gente trabalha de 900 a 1.200 graus. É uma transformação da matéria em outra matéria. O fogo tem esse poder, e depois ainda tem a transformação da comida dentro da cerâmica que foi feita no fogo. Então, é fogo e mais fogo transformando – reflete ela, que também é escritora.
Para Ana, a criação das panelas também propõe uma análise sobre o tempo:
– Em panela de barro, é um cozimento muito mais lento, exige um tempo diferente. Isso acaba levando a gente para dentro.
Na Casa do Caramujo, espaço dedicado às artes fundado por Ana e Adriana Antunes em Caxias, a cerâmica não é fruto de produção, e sim de criação. Isso porque as ações e oficinas oferecidas por lá defendem os princípios mais poéticos do feito à mão.
– É gerar algo de acordo com o que tu está sentindo no momento, as coisas que tu está passando. A gente lida com a ideia de que o feito à mão é isso. No caso da cerâmica, a argila tem uma forma de tu extravasar, às vezes até de se colocar do avesso. Aquilo que está dentro acaba passando para o barro e ele te mostra coisas que tu nem imaginava – analisa Ana.
Carinho de ponto em ponto
Na infância da artista Etiene Nadine, 33 anos, as linhas e agulhas foram ferramentas para suavizar a hiperatividade. Aos cinco anos, ela foi apresentada ao tricô, mas achou a técnica um pouco difícil. Um ano depois, conheceu o crochê e ficou impressionada com tudo que aquela agulhinha era capaz de criar. Vivendo, desde então, entre idas e vindas com a técnica, foi há cerca de dois anos que ela resolveu fazer do hobby coisa séria. Assim fundou a marca Detiê Arte em Laços, na qual cria desde toucas, mantas e pantufas até casacos, cobertas e até sutiãs.
– Agulha e lã na mão é universo infinito. É como uma tela em branco para mim – diz a cantora, que participou do clipe da campanha De Manta e Cuia (veja acima).
Já há algum tempo, setores como o da moda vêm agregando mais valor às peças feitas à mão. Para a Etiene, o reconhecimento é um tanto tardio, já que muitos artesãos passaram a vida toda sem ganharem a devida atenção nesse universo. A crocheteira defende a singularidade das criações artesanais como uma particularidade que merece cada vez mais atenção.
– O amor que tem envolvido em cada ponto da arte manual é o que vale. Existe a empatia de querer que a pessoa sinta o carinho que tu colocou no trabalho. Cada peça é única, cada ponto é diferente, é um pouco de ti – justifica.
Leia também
Live da Orquestra Municipal de Garibaldi com o cantor Cristiano Quevedo é atração neste domingo
A Trupe dos Quatro, de Bento Gonçalves, está completando 15 anos
Edição online do Bazar Colheita Tardia ocorre até a próxima terça
Artistas de Caxias participam de coletânea do selo Tal e Tal Records
É fã de doce de abóbora? Aprenda a fazer o melhor!