Ser acordado em meio ao sono pelo barulho de um despertador deveria ser proibido por lei. Algo a se pensar, nesses tempos esquisitos em que o ato de proibir vem conquistando um ibope só igualado ao que desfrutam as censuras nas ditaduras, mas deixemos os obscurantismos de lado, por favor, que de pesadelos bastam os dos sonhos. Pois é, exatamente isso: despertadores, mesmo que agora municiados com a possibilidade de baixar aplicativos com musiquinhas suaves que nos encantam, sempre acabam nos extirpando a fórceps das doces pradarias oníricas para a aridez da realidade desperta em um piscar de olhos (a essas alturas, semicerrados e ainda remelentos, confessemos). A mim, não faz bem, e, sempre que sou acordado desse jeito, demoro alguns instantes para encaixar a alma ao corpo, que se ergue de susto da cama e adentra o roupeiro em busca da tampa do vaso a ser erguida com urgência matinal.
Ser trazido dessa maneira à realidade deixa sonhos órfãos, inconclusos e a meio caminho, o que pode vir a ser um problema. Manhã dessas, ao despertar de forma suave e natural, sem o auxílio (e a imposição) de nenhum despertador, vi-me emergindo de dentro de um jipe, chapéu australiano na cabeça, exclamando ao sujeito sentado ao volante: “Adis Abeba fica para o outro lado!”. E puf! Saí do sonho! Adis Abeba? Onde fica Adis Abeba? Teria de verificar no google maps, durante o café da manhã. Ao saltar da cama rumo à porta correta do banheiro, recordava ainda do chapéu australiano que também encimava a cabeça de meu parceiro de jipe, cuja identidade não soube definir. Seria meu guia? Se fosse, era um incompetente, afinal, Adis Abeba ficava definitivamente para o outro lado. Jamais contrate guias em sonhos, fica a dica. Areia cercava o jipe por todos os lados, e seguramente não era a de Torres. Em que deserto estávamos? No do Saara? No de Gobi? Indecifrável!
Mas senti alívio por ter acordado de forma natural no justo instante em que percebi que Adis Abeba ficava para o outro lado. Caso um despertador me tivesse arrancado do jipe minutos antes, eu corria o risco de ficar eternamente perdido naquele sonho, em um deserto inominável, desorientado em relação à posição real de Adis
Abeba. Seria terrível, pois não sei quanta água ainda tínhamos conosco nos cantis e tampouco conhecia as intenções do chapeludo ao meu lado. Ver-se perdido e desorientado no mundo desperto é uma coisa... Já, em sonhos, é excruciante. Mas, espera um pouquinho... O que você disse? Onde fica Adis Abeba? Ora, é para o outro lado! Não é?... Ei, alguém ajuste o despertador!